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Ricardo Felício, professor negacionista, ausente e midiático

Nádia Pontes | Giselle Soares | Eduardo Geraque
30 de junho de 2023

Docente da USP obteve amplo espaço na mídia e nas redes sociais com desinformação sobre as mudanças climáticas.

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Classe da FFLCH, da USP
Estudantes da USP publicaram uma carta-manifesto contra os posicionamentos do professor Ricardo FelícioFoto: Nadia Pontes/DW

No flanelógrafo do departamento de Geografia da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da Universidade de São Paulo (USP), o nome de Ricardo Felício aparece ao lado de outros professores em atividade. Mas na sala de aula ou no laboratório onde atuava, ele não é visto desde antes da pandemia, afirmam alunos e funcionários ouvidos pela reportagem.

Contratado em regime parcial, que obriga o docente a trabalhar 12 horas semanais, Felício não ministrou disciplinas em 2023, de acordo com o DataUSP. Ainda assim, recebe salários. Nos primeiros cinco meses do ano, um total de R$ 2.814,53 foram repassados mensalmente ao professor, segundo o Portal da Transparência da USP, cifra compatível com seu regime de trabalho.

Não é apenas a ausência do docente que incomoda. Estudantes do Centro de Estudos Geográficos Filipe Varea Leme publicaram uma carta-manifesto contra os posicionamentos de Felício. O texto sustenta que o professor "cria fatos e conflitos para sua autopromoção" e "busca criminalizar o pensamento crítico, a produção científica engajada nas questões socioambientais e transformar as instituições públicas em legitimadores do processo de espoliação das nossas riquezas, queimada das nossas matas, coveiro da biodiversidade e da qualidade de vida".

Os posicionamentos polêmicos fazem com que Felício seja visto como uma figura quase folclórica pela comunidade acadêmica. Paulo Martins, diretor da FFLCH, enfatiza que: "Qualquer tipo de fala ou ação da faculdade ou da universidade não condiz com a fala desse professor."

Academia e política

Ricardo Augusto Felício formou-se em Ciências Atmosféricas - Meteorologia pela USP em 1998. É mestre em Meteorologia pelo Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe), curso que concluiu em 2003, e obteve o título de doutor em Geografia pela USP em 2007, mesmo ano em que ingressou no corpo docente da instituição.

Ao longo de dez anos, de 2007 a 2017, Felício publicou 11 artigos em periódicos de baixo impacto. Oito deles foram na mesma revista e seguiam a mesma linha: negar o impacto da ação do homem sobre o clima global. Os textos, marcados por numerosas exclamações e uma linguagem opinativa, contestam, sem embasamento científico, dados divulgados em especial pelo Painel Intergovernamental para as Mudanças Climáticas (IPCC).

A carreira científica de Felício o impediu de obter o título de livre-docente em 2014. A reprovação no concurso, segundo a banca, se deu pelo seu baixo rendimento, tanto docente quanto acadêmico. "A divulgação de suas pesquisas (publicações) e orientação nos programas de pós-graduação estão insuficientemente trabalhados", dizia o texto do Diário Oficial que informava sobre a sessão pública de titulação.

O currículo Lattes de Felício, ferramenta usada por cientistas como registro de cada passo dado na vida acadêmica, não é atualizado desde 2017, ano que antecede sua candidatura a deputado estadual por São Paulo, pelo então partido de Jair Bolsonaro, o Partido Social Liberal (PSL).

Sem um cargo político, o professor participou como palestrante de atividades na Assembleia de São Paulo, em 2017, e de evento a convite do Partido Social Democrático (PSD). Nessa última ocasião, questionou mais uma vez o impacto da ação antrópica no aquecimento global.

Em 2019, durante o governo de Jair Bolsonaro, esteve numa audiência pública no Senado, ao lado de Luiz Carlos Molion, professor aposentado da Universidade Federal de Alagoas (Ufal). O evento, organizado pelo senador Márcio Bittar (MDB-AC) na Comissão de Relações Exteriores, propagou teses falsas sobre as mudanças climáticas.

Perfil midiático

Com um discurso carismático, sempre sorridente e olhando diretamente para o interlocutor, Felício é visto com frequência em vídeos divulgados nas redes sociais. Plataformas como YouTube, Instagram e outras menos conhecidas e, por consequência, menos moderadas, como Rumble e Odysee — também são usadas para monetização. Um exemplo é a venda de curso on-line "A mudança climática – desconstruindo a hipótese" e pedidos de doações financeiras.

Felício também é bastante ativo como articulista da revista Oeste, que se define como um veículo conservador, sempre focando em deslegitimar o trabalho do IPCC. Segundo ele, "o IPCC consegue cumprir a sua função de chegar a conclusões totalmente opostas que observamos no mundo real para propagarem o seu terrorismo".

Em um texto recente, Felício contesta os dados do último relatório de avaliação do IPCC com base em alegações de uma desconhecida fundação, a Climate Intelligence (Clintel), que defende a inexistência de uma emergência climática global e conta com pouco mais de 1.500 signatários em todo o mundo.

Em 2010, durante a 62ª Reunião Anual da Sociedade Brasileira Para o Progresso da Ciência (SBPC), Felício criticou o modelo do IPCC e argumentou que o aquecimento global seria fruto de uma variabilidade natural do sistema climático, podendo ser atribuído a ciclos solares, vulcões e outros fatores naturais. Dois anos depois, em 2012, a tese falaciosa foi amplificada pelo Programa do Jô, durante o qual ele afirmou que "o aquecimento global virou bode expiatório para todos os males da humanidade".

Felício contabiliza, ainda, outras participações em programas de grande audiência, como Pânico, da Jovem Pan, Leda Nagle (YouTube) e o extinto Todo Seu, apresentado por Ronnie Von na TV Gazeta.

Além dessas aparições midiáticas, também conquistava alguma visibilidade em eventos acadêmicos, como em 2016, quando o Instituto de Química de São Carlos (IQSC) promoveu o seminário "Aquecimento Global: Pseudociência e Geopolítica", integrando o Ciclo de Palestras e Seminários "Química às 16h".

Desinformação em outras áreas da ciência

A desinformação praticada por Felício não se restringe às mudanças climáticas. Em 2021, dois de seus vídeos foram removidos do YouTube por conterem desinformações médicas, alegou a plataforma. Uma política implementada pela rede social em 2020 veta a

disseminação de informações médicas incorretas sobre a COVID-19. A remoção o levou a processar o Google, mas ele perdeu a causa.

A reportagem tentou contato com Felício, mas não obteve retorno até o fechamento do texto.

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*Esta reportagem foi feita com o apoio do programa Disarming Disinformation, do International Center for Journalists, e apoio financeiro do Instituto Serrapilheira. Disarming Disinformation é um esforço global de três anos com financiamento principal do Scripps Howard Fund.