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Evaristo de Miranda e sua estatística criativa

Nádia Pontes | Renata Fontanetto | Vanessa Brasil | Eduardo Geraque
30 de junho de 2023

Servidor público aposentado ganhou respaldo político da Embrapa ao longo de 42 anos e espalhou dados questionados por outros cientistas sobre o meio ambiente brasileiro.

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Plantação de soja
No site da Embrapa Territorial, Evaristo de Miranda ainda consta como coordenador do projeto das análises sobre o Cadastro Ambiental Rural (CAR). A reportagem constatou que a Aprosoja Rondônia financiou um dos projetos com dados do CARFoto: DW/N. Pontes

Figura conhecida no cenário brasileiro de desinformação ambiental, Evaristo de Miranda, servidor aposentado da Embrapa em 2023, ampliou os holofotes sobre si durante o governo de Jair Bolsonaro. No período, ele era considerado uma espécie de "guru ambiental" do ex-presidente.

Mesmo fora da Embrapa Territorial (ET), centro que Miranda chefiou em três períodos (1989 a 1991, 2005 a 2009 e 2015 a 2021), o servidor continuou influenciando a instituição indiretamente. Manter pessoas próximas em postos-chave de comando sempre foi uma das estratégias usadas por ele, segundo fontes ouvidas pela DW sob condição de anonimato.

Na época da aposentadoria do ex-chefe, Gustavo Spadotti Castro, o atual diretor da unidade, afirmou que "o agro não deve lamentar, pois Evaristo ainda dará muitas contribuições ao setor, agora de novas maneiras; ainda tenho desejo de contar com seus préstimos como membro do Conselho Assessor Externo da Embrapa Territorial".

A habilidade de se aliar ao poder ao longo de décadas na Embrapa, instituição que deu a ele respaldo político, sempre foi maior do que seu empenho em fazer ciência, segundo vários pesquisadores que conhecem o modo de atuar, há tempos, de Miranda.

"Fake scientist"

A forma como o ex-gestor manipula dados já foi alvo de denúncias de cientistas brasileiros. Carlos Nobre, pesquisador aposentado do Inpe e presidente do Painel Científico para a Amazônia (SPA, na sigla em inglês), credita a Miranda o título de "fake scientist" (falso cientista, em português). "Ele tem pouquíssimas publicações em revistas de impacto. Ele sempre se vendeu dentro da Embrapa como um super cientista. E ele realmente não é um cientista respeitado internacionalmente", afirma.

Para Gilberto Câmara, cientista da computação e ex-diretor do Inpe, a habilidade de organização e articulação política de Miranda é o que o diferencia no contexto da desinformação ambiental. "O Evaristo está ligado a um projeto concreto de poder do agronegócio e fornece informações mentirosas que são difíceis de refutar. É difícil reproduzir o trabalho dele, você não sabe como ele gerou o dado. O vínculo que ele teve com a Embrapa durante esses anos todos deu a ele um verniz de credibilidade ou um lugar de fala, como se diz hoje", considera.

No currículo Lattes do ex-chefe da ET, ferramenta usual de pesquisadores brasileiros para registro e comprovação de atividades acadêmicas e de pesquisa, há apenas um projeto registrado, de 1996 a 1998, e poucas participações em processos de avaliação de projetos de mestrado e doutorado. Ao todo, foram 26 participações em bancas, oito orientações de mestrado e duas coorientações de doutorado.

Nos últimos dez anos, apenas dois artigos de pesquisa foram publicados em revistas com classificação no sistema Qualis, critério brasileiro da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes) para avaliar periódicos. Mesmo assim, são revistas A4, de alcance e impacto científico restritos.

Tentativa de minimizar desmatamento

Após analisarem, a pedido da DW, o último artigo assinado por Miranda, especialistas alertam que há falhas consideráveis e conclusões sem embasamento. O estudo seria para "identificar, qualificar e quantificar o universo" dos produtores rurais no bioma Amazônia e a "participação efetiva do mundo rural nos processos de desmatamento" no território.

Os resultados foram obtidos a partir do cruzamento entre três bases de dados: o Censo Agropecuário 2017 do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), o Cadastro Ambiental Rural (CAR) até abril de 2019 e os dados de desmatamento do Inpe entre 2009 e 2018. Os resultados de Miranda sugerem que "97% dos produtores rurais e unidades de produção, em sua maioria pequenos, não participam do processo de desmatamento na Amazônia". Além disso, ele e parte de sua equipe afirmam que 12% dos casos ocorreram em áreas protegidas e não nas rurais.

"O artigo mostrou um viés e tenta minimizar o desmatamento na Amazônia. É uma revista que tem Qualis A4, ou seja, o impacto é limitado. É um texto que tem em torno de 20 citações, sendo que só dois são artigos científicos. Há pouco diálogo com o que a comunidade científica faz", avalia Cláudio Almeida, coordenador do Programa de Monitoramento da Amazônia e Demais Biomas, do Inpe.

Almeida enxerga ainda uma tentativa sutil de desqualificação dos dados de desmatamento da Amazônia pelo Projeto de Monitoramento do Desmatamento na Amazônia Legal por Satélite do Inpe (Prodes/Inpe). Reconhecido internacionalmente, o programa tem 35 anos e analisa desde 1988 as taxas de desmatamento na região.

"Quando o artigo diz que o Prodes não monitora a totalidade do bioma Amazônia, não é verdade. O Prodes monitora a perda de floresta primária em 100% do bioma Amazônia, partes do bioma Cerrado e partes do Pantanal", explica Almeida.

A questão do monitoramento do Inpe sobre os biomas brasileiros, respeitado no mundo inteiro, gerou uma crise específica durante o governo Bolsonaro. Alimentado por teses sem base na ciência, o ex-presidente entrou em rota de colisão com Ricardo Galvão, então diretor da instituição. A tese governista, em linhas gerais, era de que o Inpe inflava os números do desmatamento.

Mesmo utilizando os dados do CAR, uma ferramenta às vezes imprecisa por ser preenchida de forma autodeclaratória, membros da comunidade científica chegaram a resultados diferentes dos de Evaristo e equipe. Um estudo publicado em 2023 na Communications Earth & Environment indica que, de 2012 a 2020, mais da metade do desmatamento ocorreu em áreas de pequenos produtores, aqueles com até quatro módulos fiscais, e que o bioma Amazônia foi o mais afetado. Além disso, "entre 2003 e 2020, as taxas de desmatamento nas terras privadas foram mais altas do que aquelas em todas as áreas de conservação", avalia a pesquisa.

O CAR é uma ferramenta importante de gestão pública, usada para mapear as propriedades rurais privadas. O cadastro obrigatório foi instituído pelo Código Florestal de 2012. Por meio de um software, todo dono de imóvel rural deve desenhar os limites de sua propriedade, informando as áreas de uso e preservação ambiental, como o uso consolidado para atividades financeiras agropecuárias, a Reserva Legal e Áreas de Preservação Permanente - entornos de rios e lagoas, cursos hídricos e topos de morro, por exemplo. Um dos objetivos do registro, que ainda precisa passar por aperfeiçoamento segundo análises técnicas, é o controle do desmatamento.

Projetos financiados pela agroindústria

No site da Embrapa Territorial, Evaristo de Miranda ainda consta como coordenador do projeto das análises sobre o CAR. Em resposta a um pedido de Lei de Acesso à Informação, a reportagem constatou que dois projetos diferentes com dados do CAR foram financiados por atores ligados à agroindústria: um na Amazônia, pela Associação dos Produtores de Soja e Milho do Estado de Rondônia (Aprosoja Rondônia), e um no Cerrado, pela Confederação da Agricultura e Pecuária do Brasil (CNA).

Miranda defende que "é preciso que se saiba e que se reconheça que as Unidades de Preservação integrais protegem 10% do Brasil, enquanto os agricultores protegem 2,5 vezes mais com o seu próprio patrimônio", como declarou ao receber um prêmio dado pela CNA em 2018. Pesquisadores e artigos científicos buscados pela reportagem contestam, no entanto, a forma como Miranda divulga e faz suposições sobre as análises do CAR, alegando que faltam dados e embasamento científico.

Indagado sobre a atual aproximação profissional com o ex-chefe, Castro não se manifestou.

Em seu site oficial, Miranda diz ter se aposentado no início de 2023 como "assessor da presidência da Embrapa". Em resposta a esta reportagem, a Embrapa informou que, desde 2 de fevereiro deste ano, Miranda não possui vínculo empregatício algum e tampouco presta qualquer serviço de consultoria ou assessoria à empresa. Em sua última folha de pagamento como servidor público, de novembro do ano passado, consta que ele recebeu por volta de R$ 30 mil líquidos.

Procurado por e-mail e telefone, Miranda não se manifestou até o fechamento deste texto. O ex-chefe da Embrapa chegou a atender o celular, mas desligou assim que a reportagem se identificou. A assessoria geral da Embrapa não se posicionou sobre as denúncias feitas ao ex-funcionário, tampouco a Embrapa Territorial concedeu o pedido de entrevista com Castro.

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*Esta reportagem foi feita com o apoio do programa Disarming Disinformation, do International Center for Journalists, e apoio financeiro do Instituto Serrapilheira. Disarming Disinformation é um esforço global de três anos com financiamento principal do Scripps Howard Fund.