"É preciso corrigir o desequilíbrio nas relações Brasil-UE"
17 de julho de 2023O enfrentamento das mudanças climáticas e a transição ecológica da economia são duas agendas que têm o potencial de unir brasileiros e europeus para além das divergências em outros temas, como a guerra na Ucrânia – desde que haja igualdade nas relações.
É o que defende Maiara Folly, diretora-executiva da Plataforma Cipó, instituto que realiza pesquisas na área de clima, governança e relações internacionais a partir de perspectivas do Sul Global.
Especialista em relações internacionais e políticas públicas pela Universidade de Oxford, ela é uma das autoras de estudo apresentado nesta segunda-feira (17/07) em Bruxelas, na Bélgica, a políticos brasileiros e europeus, em evento paralelo à Cúpula da Comunidade dos Estados Latino-Americanos e Caribenhos (Celac) e da União Europeia (UE). O documento contém sugestões para fortalecer as relações entre o Brasil e o bloco europeu, que depois da China é o principal parceiro comercial do país.
Citando o acordo Mercosul-UE, Folly aponta o desenvolvimento conjunto de tecnologias como um caminho para uma parceria mais justa. "O Brasil precisa se beneficiar também da produção de produtos com valor agregado. Não vender só os minérios, mas também produzir – por que não? – carros elétricos, turbinas para geração de energia eólica, placas para geração de energia solar."
Sobre as resistências do Brasil à lei antidesmatamento europeia e às novas exigências da UE para a ratificação do acordo, Folly diz que garantias socioambientais robustas são importantes, mas frisa que é preciso ajudar – inclusive financeiramente – países em desenvolvimento a cumpri-las e adotar regras "equilibradas" que valham "para todas as partes".
"Acho que o caminho é apoiar os programas que o Brasil já tem – Fundo Amazônia, por exemplo. O Brasil pode e deve usar essa oportunidade para avançar suas próprias políticas de combate ao desmatamento."
DW: Quais são os empecilhos hoje a uma transição ecológica que seja justa tanto para o Brasil quanto para a UE?
Maiara Folly: Embora tanto o combate às mudanças climáticas quanto a promoção da transição justa sejam de interesse das duas partes, Brasil e UE têm modelos econômicos diferentes, que estão em graus de desenvolvimento bastante distintos. A UE já conseguiu se desenvolver tecnologicamente, e o Brasil procura ainda atingir um grau maior de desenvolvimento. As relações foram desiguais no passado: enquanto o Brasil se destacava na exportação de matérias-primas, a UE se destacava mais pela exportação de produtos tecnológicos de valor agregado. É importante tentar corrigir esse desequilíbrio.
Como?
Do ponto de vista da transição energética, o caminho mais concreto é o desenvolvimento conjunto desse tipo de tecnologia. Um exemplo: o Brasil e vários outros países da América Latina possuem uma série de minerais estratégicos – usados na produção de baterias, veículos elétricos etc. –, ao passo que a UE tem interesse em diversificar os seus parceiros comerciais para garantir o acesso a esses minerais. O Brasil precisa estabelecer uma parceria mais igualitária, se beneficiar também da produção de produtos com valor agregado. Não vender só os minérios, mas também produzir – por que não? – carros elétricos, turbinas para geração de energia eólica, placas para geração de energia solar. Esse é um desequilíbrio que precisa ser corrigido para que os dois lados consigam promover uma transição que seja de fato justa.
Do ponto de vista dos incentivos financeiros, vai ser importante discutir a legislação para barrar a entrada no mercado europeu de produtos associados a crimes ambientais e a violações de direitos humanos. O Brasil tem uma certa competitividade na área agrícola e há um temor, por parte do governo brasileiro, de que os europeus instrumentalizem essas regras para criar barreiras comerciais aos produtos brasileiros. É importante que haja cooperação, incentivos positivos e contribuições financeiras por parte da UE para que os produtores brasileiros, sobretudo os pequenos, consigam se adaptar a essas exigências.
Mas não é positivo que exista essa legislação justamente para pressionar os grandes produtores – que de qualquer forma já respondem pelo grosso das exportações de commodities – por mais responsabilidade social e ambiental?
Essa legislação cumpre um papel muito importante porque há grandes empresas brasileiras do agronegócio que infelizmente ainda adotam práticas muito predatórias no que diz respeito à sua produtividade. A gente tem denúncias de uma série de produtos brasileiros associados ao desmatamento, invasão de terras públicas, violações de direitos de povos indígenas.
Essa legislação não existe só na UE. O Reino Unido tem a sua própria, os Estados Unidos estão fazendo essa discussão. Isso gera uma série de critérios e exigências que nem todo pequeno produtor consegue entender e cumprir. Para esse tipo de ator é muito importante que haja um incentivo para que eles cumpram as exigências.
Mas não é como se esses produtores ficassem sem mercado. O mercado interno brasileiro é enorme, e há outros países mundo afora que não se importam tanto…
Acho que isso reforça a necessidade de cooperação, porque se os atores brasileiros acharem que está muito difícil entrar no mercado europeu, outros países têm exigências menos robustas e podem ter interesse em continuar comprando o produto brasileiro mesmo que ele esteja associado ao desmatamento.
Agora que essa normativa existe, é o momento de colocar brasileiros e europeus juntos e pensar, pragmaticamente, em como apoiar o cumprimento desses requisitos. Acho que o caminho é apoiar os programas que o Brasil já tem – Fundo Amazônia, por exemplo. O Brasil pode e deve usar essa oportunidade para avançar suas próprias políticas de combate ao desmatamento.
Quais as críticas de vocês ao acordo Mercosul-UE?
A primeira é que o processo de negociação do acordo foi pouco transparente e participativo. A maior parte foi negociada a portas fechadas e a sociedade só ficou sabendo quando estava praticamente finalizado. Havia uma expectativa maior de que outros atores da sociedade, não apenas de governo, fossem ouvidos.
Outro aspecto diz respeito à questão ambiental. Os acordos de livre-comércio, de modo geral, são muito fracos no que diz respeito a garantias ambientais. Mas esse acordo chega em um novo contexto, de crise climática muito grande, daí a necessidade de fortalecer esses mecanismos e garantias socioambientais. Por outro lado, é muito difícil avaliar porque o texto não é público. O que sabemos é que o governo brasileiro achou muito desproporcional porque torna obrigatórios compromissos que o Brasil assumiu voluntariamente, sob pena de sanções e fechamento do mercado europeu. Com base no que nós sabemos, que é de conhecimento público, a gente acha que o texto precisa ser equilibrado, valer para todas as partes; não deve olhar apenas para o desmatamento, mas para as emissões de maneira geral; e que haja repercussões para ambos os lados em caso de não cumprimento das obrigações ambientais.
No caso europeu existe, por um lado, uma sociedade civil e eurodeputados que querem garantir que essas normativas socioambientais sejam bastante fortes. Por outro lado, há setores protecionistas em países como a França e a Áustria preocupados em abrir seu mercado ao agronegócio brasileiro. Tem essas tensões. De um lado, o agronegócio brasileiro pressiona por normas socioambientais menos robustas e por uma abertura comercial maior e, do outro, setores europeus temem não conseguir competir com o agronegócio brasileiro.
E quanto à indústria?
O acordo ainda reflete um problema estrutural do Mercosul, com maior espaço na venda de produtos primários e abertura de mercado para importação de produtos tecnológicos europeus. O Brasil quer dar preferência a empresas brasileiras nas compras governamentais para incentivar a industrialização. Os países europeus, inclusive, tiveram muito de sua industrialização financiada com dinheiro público. O Brasil gostaria de se reservar o direito de fazer o mesmo e precisa se atentar para não correr o risco de o acordo ter um impacto negativo nessa tentativa de reindustrialização.
O acordo está em negociação há décadas e o texto foi finalmente concluído no governo de Jair Bolsonaro. O Brasil tentou acelerar a finalização desse acordo para ter algum ganho de política externa para apresentar, mas fez muitas concessões. Depois houve retrocessos ambientais enormes, e aí a UE entendeu que não haveria ambiente político para ratificar esse acordo nas condições que ele estava. Foi daí que veio a side letter [com exigências adicionais], como uma reação aos retrocessos ambientais.
Não seria um contrassenso o governo atual reclamar dessas exigências ambientais justamente quando Lula se coloca como antítese de Bolsonaro nessa área e a agenda dos ruralistas avança no Congresso?
Sim e não. É difícil responder a essa pergunta sem ter acesso à side letter.
O Brasil hoje tem vantagem competitiva na agricultura. Se a side letter, de fato, cria sanções caso, por exemplo, o Brasil não consiga atingir sua meta de zerar o desmatamento – que a gente sabe que é uma tarefa extremamente complexa e difícil –, o país fica numa posição de vulnerabilidade. Não é que não deva ter obrigações, mas as exigências precisam ser equilibradas e valer para todas as partes. Quais serão as consequências caso a UE não cumpra suas metas de redução de emissões? Eu não consigo saber se esse tipo de exigência está prevista porque a gente não tem acesso à side letter.
A UE está tentando impor ao Brasil padrões ambientais mais altos do que os que ela mesma segue?
Não necessariamente. A meu ver a UE está tentando elevar os padrões socioambientais do bloco. Mas algumas regiões estão em graus de desenvolvimento diferentes. É mais difícil para países da América Latina, África, investir e adaptar esses setores produtivos. A UE já atingiu um grau de desenvolvimento e historicamente é um dos atores que mais poluiu. É importante que essa responsabilidade diferenciada seja reconhecida.
Ter um comércio sem desmatamento e violações socioambientais é muito importante. A gente precisa ter esse objetivo. Mas é importante que países desenvolvidos apoiem, inclusive financeiramente, outros países menos desenvolvidos no cumprimento dessas exigências.