UE prorroga por mais 10 anos licença para uso do glifosato
16 de novembro de 2023A Comissão Europeia anunciou nesta quinta-feira (16/11) que prorrogará por mais dez anos a licença para o uso do glifosato na União Europeia (UE). A decisão foi tomada devido à falta de um consenso entre os 27 países do bloco sobre a extensão da licença ou a proibição do agrotóxico mais utilizado no mundo, cuja aplicação é alvo de polêmicas e intensos debates entre especialistas e ambientalistas.
Representantes dos países membros da União Europeia não conseguiram chegar a um acordo sobre o tema no mês passado. Segundo fontes diplomáticas, setes países, incluindo a França, Alemanha e Itália, se abstiveram na votação. Nesta quinta, uma nova votação também foi inconclusiva. A licença do glifosato expiraria em meados de dezembro. Devido ao impasse, a Comissão Europeia decidiu endossar a própria proposta e prorrogar por dez anos a autorização para o uso do produto.
"Para equilibrar essas considerações, a Comissão adotará uma renovação da licença do glifosato por um período significativamente mais curto do que o máximo possível, ou seja, dez anos", escreveu o braço Executivo da UE em comunicado.
A Comissão Europeia, no entanto, incluiu novas restrições sobre o produto na prorrogação da licença, que determinam a proibição do uso do glifosato como dessecante na pré-colheita e medidas para a proteção de organismos não visados pelo agrotóxico.
Após o anúncio, a decisão foi criticada pelo presidente da Comissão de Meio Ambiente do Parlamento Europeu, Pascal Canfin, que acusou a presidente da Comissão Europeia, Ursula von der Leyen, de impor a prorrogação apesar do impasse.
"Ursula von der Leyen está forçando a questão ao renovar a autorização para o uso do glifosato por dez anos sem qualquer maioria, enquanto as três maiores potências agrícolas do continente (França, Alemanha e Itália) não apoiaram essa proposta. Lamento profundamente isso", escreveu Canfin no X (antigo Twitter).
Amplamente aplicado na União Europeia e em vários países do mundo, o glifosato tem estado no centro de um acalorado debate científico sobre seus efeitos na saúde e no meio ambiente.
Em julho, a Autoridade Europeia para a Segurança Alimentar (EFSA) declarou que não encontrou "áreas de preocupação crítica" que justificariam uma proibição do produto, embora tenha ressaltado que possuía poucos dados para avaliação.
A EFSA informou que entre os aspectos que não puderam ser esclarecidos de maneira conclusiva estão os riscos nutricionais para os consumidores e avaliações de risco para plantas aquáticas. O material disponível também não permitiu chegar a conclusões sobre potenciais riscos à proteção de espécies. O caráter inconclusivo do relatório foi amplamente criticado por especialistas independentes.
O que é glifosato?
O glifosato foi disseminado pela Monsanto a partir de 1974. A empresa química americana misturou o composto orgânico de fósforo com outras substâncias e vendia o produto como herbicida sob o nome Roundup.
Antes da semeadura, os agricultores borrifam seus campos com o produto, as partes verdes (como folhas e caules) o absorvem e as plantas morrem. O método impede o crescimento de ervas daninhas e elimina a competição prejudicial ao crescimento das culturas.
Os pesticidas que contêm glifosato são agora produzidos por várias dezenas de empresas químicas em todo o mundo. A alemã Bayer comprou a Monsanto em 2018 e tem "uma posição de liderança" no ranking global, segundo o porta-voz da Bayer, Utz Klages.
Qual o problema do glifosato?
A morte das plantas silvestres nos campos priva os insetos de seu habitat, e os pássaros, por exemplo, de seu alimento. "O herbicida destrói a base alimentar dos animais", explica Jörn Wogram, chefe do departamento de produtos fitofarmacêuticos da agência de proteção ambiental do Ministério do Meio Ambiente alemão. Portanto juntamente com outros pesticidas, o glifosato ameaça a biodiversidade.
Segundo estudos, a substância também afeta bactérias, altera o material genético e o sistema nervoso e pode, portanto, causar sérios danos diretos a animais e seres humanos. Um estudo da Universidade de Ulm constatou grandes malformações em girinos, com distúrbios no cérebro, coração, olhos, cartilagem craniana e formato do corpo causados pelo agrotóxico.
Ao ser borrifado, o veneno se espalha pelo ar, penetra no solo, contamina águas superficiais e subterrâneas e pode ser encontrado em alimentos, urina e leite materno.
Pesticidas contendo glifosato são usados em grande quantidade, por exemplo, na produção de soja na Argentina, com consequências para a saúde humana: "Podemos ver claramente que há mais doentes por causa do glifosato: em certas regiões rurais triplicou a probabilidade de ter câncer", diz Medardo Ávila Vázquez, médico do Hospital Universitário de Neonatologia de Córdoba (Argentina) e coautor de um estudo sobre câncer relacionado ao uso da substância.
Além disso, segundo outro estudo, o uso de glifosato em áreas de cultivo de soja aumentou de duas a três vezes o número de abortos espontâneos. E devido aos danos ao material genético, "o número de deformidades quadruplicou", relata Ávila Vázquez.
Outros estudos também mostram mudanças no genoma. "Nós sabemos: o glifosato tem um efeito genotóxico. Diversos estudos com humanos e com animais confirmam isso. Pudemos detectar que quanto maior o nível e o período de exposição, maior o risco", explica a pesquisadora de oncologia Luoping Zhang, da Universidade de Berkeley, nos Estados Unidos.
Zhang avaliou estudos sobre câncer relacionados ao glifosato, particularmente linfomas não-Hodgkin, um tipo de câncer linfático. "Indivíduos expostos ao glifosato têm um risco 41% maior de desenvolver linfoma não-Hodgkin. Esta é a principal conclusão do nosso estudo."
Outros estudos independentes mostram que o glifosato pode danificar o sistema nervoso causar mal de Parkinson: e que também danifica os microrganismos, alterando a composição vital das bactérias intestinais, com consequências para a saúde.
Como órgãos reguladores reagem aos estudos?
Em 2015 a Agência Internacional de Pesquisa em Câncer (IARC, na sigla em inglês), órgão da Organização Mundial da Saúde (OMS), concluiu que o glifosato provavelmente é cancerígeno, com base em estudos independentes e publicados.
No entanto, as autoridades nacionais são responsáveis pela aprovação do glifosato e baseiam-se quase exclusivamente nas informações fornecidas pelos fabricantes de pesticidas. Mas seus estudos não são divulgados e, portanto, não são revistos por cientistas independentes. Os cientistas há muito criticam essa prática de aprovação como "cientificamente inaceitável".
A EFSA avaliou recentemente o glifosato e não identificou quaisquer áreas problemáticas críticas para a saúde humana e animal. No entanto reconheceu faltarem dados para uma avaliação abrangente. Cientistas independentes criticam o parecer. O toxicologista Peter Clausing, da Pesticide Action Network (PAN), afirma que em sua avaliação o órgão está "abandonando o âmbito científico".
Numa carta recente à comissária europeia para Saúde e Defesa do Consumidor, Stella Kyriakides, especialistas da PAN documentam como os reguladores europeus ignoraram estudos sobre o efeito cancerígeno e danos ao DNA, acusando um "desrespeito imprudente pelo dever de proteger a saúde pública e o meio ambiente" por parte das autoridades de supervisão.
Qual o impacto da prorrogação da licença?
A venda de pesticidas é importante para empresas químicas como a Bayer, que se recusa a fornecer números sobre as vendas de glifosato. De acordo com um grupo ativista Coordination gegen Bayer-Gefahren ("Coordenação contra perigos da Bayer"), as vendas rondam "cerca de 1 bilhão de euros" por ano. No entanto, a empresa afirma que já gastou 10 bilhões de dólares em disputas judiciais relacionadas a doenças causadas pelo glifosato.
O uso de glifosato e de outros herbicidas "estabiliza um sistema agrícola que não é globalmente sustentável e põe em perigo a concretização dos objetivos de sustentabilidade relacionados à proteção do meio ambiente", afirma Jörn Wogram, do Ministério do Meio Ambiente da Alemanha.
A decisão da UE também tem "sem dúvida um enorme significado" para os países do Sul Global, conforme a professora da USP Larissa Mies Bombardi, que elaborou um estudo sobre as consequências dos agrotóxicos no Brasil.
Ela avalia que uma proibição do glifosato na Europa teria grande impacto como sinal para o Brasil e outros países, onde lobistas comercializam pesticidas, argumentando que não causam problemas ambientais ou de saúde.
rc/cn (Reuters, AP, DPA, DW)