Suplicy: "Tentei ensinar, mas Bolsonaro não quis aprender"
25 de outubro de 2022Eduardo Matarazzo Suplicy (PT) praticou boxe dos 15 aos 21 anos. Embora não tenha seguido no esporte, dedicou sua vida a outra luta: a defesa incansável da renda básica de cidadania. Em 2004, o Brasil se tornou o primeiro país do mundo a instituir o mecanismo de transferência de renda, por etapas, a partir de uma lei criada por Suplicy no Senado e sancionada pelo ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva.
No entanto, até hoje a universalização da renda básica não foi efetivada. Aos 81 anos, Suplicy batalha para que seu partido dê prioridade à defesa da universalização do projeto em meio à acirrada disputa presidencial. O petista foi eleito deputado estadual por São Paulo com a maior votação do estado, escolhido por mais de 800 mil eleitores.
Durante a campanha, o engajamento em suas redes triplicou. Quando entrou no TikTok, em agosto, apareceu de terno e luvas de boxe, com uma toalha de Lula em um dos ombros. No outro, trazia a bolsa que usava quando conheceu a cantora Joan Baez nos EUA — além de um boné do Racionais MC's.
A capacidade de adaptação às novas linguagens propiciou ao petista uma vida longeva na política. O novo mandato como deputado estadual é um retorno ao ponto inicial de sua trajetória política. Em 1978, ainda sob a ditadura militar, o economista Eduardo Suplicy conquistou uma das cadeiras pelo MDB.
Na eleição seguinte, em 1980, foi eleito deputado federal. Desta vez, pelo PT, partido que ajudou a fundar. Da Câmara, passou ao Senado, onde atuou por 24 anos. Com o fortalecimento do antipetismo, foi derrotado na tentativa de reeleição, em 2014, e novamente em 2018. Desde 2016, é vereador na cidade de São Paulo.
Há mais de 40 anos ativo na vida pública, o veterano político foi escalado pelo partido como puxador de votos no estado em 2022. A estratégia foi bem-sucedida. Porém, a campanha revelou um incômodo de Suplicy com a atenção destinada pelo partido à proposta de universalização da renda básica.
No dia 21 de junho, quando a direção do PT e a coordenação da campanha de Lula se reuniram para apresentar as diretrizes do programa de governo do candidato, o ex-senador interrompeu a reunião e relatou não ter sido convidado. Por fim, queixou-se por não ter havido menção ao projeto dentre as 15 metas de governo anunciadas no encontro.
Após o desabafo público de Suplicy, o coordenador econômico do programa de Lula, Aloízio Mercadante, mostrou ao correligionário que a proposta constava no plano, em um item não lido.
"Portanto, estava no plano, mas eu não tinha visto ainda. Aquilo causou uma repercussão, mas eu achei que foi justa a minha interpelação a ele, porque não estava dando destaque àquilo que eu considero um dos pontos mais importantes do programa", afirma Eduardo Suplicy, em entrevista à DW.
Fora do Brasil, o ex-pugilista vê sua luta ecoar e ganhar endosso em diferentes esferas da sociedade. Em setembro, saiu do Brasil em meio à campanha eleitoral para atender a um chamado do papa Francisco, que o convidou para um evento em Assis, na Itália.
No livro Vamos Sonhar Juntos, o sumo pontífice defende a instituição de uma renda básica por meio de um imposto de renda negativo. Ao receber das mãos do brasileiro livros de sua autoria e uma carta enviada por Lula, o papa respondeu em tom bem-humorado: "E a cachaça, não veio?", relata Suplicy.
O agravamento da vulnerabilidade social durante a pandemia de covid-19 intensificou o debate sobre a necessidade do instrumento defendido por Suplicy. A discussão já vinha ganhando espaço ante a perspectiva da redução de postos de trabalho nas próximas décadas, em decorrência da automação.
Em 2019, durante uma audiência na Câmara dos Deputados, o atual ministro da Economia, Paulo Guedes, elogiou a ideia do ex-senador. Em seguida, Suplicy enviou exemplares do livro A Utopia, de Thomas More, a Guedes e ao presidente Jair Bolsonaro.
"O gabinete do presidente agradeceu o presente, mas não disse que ele tenha lido. Ou seja, eu tentei procurar ensinar a ele, mas acho que não quis aprender", lamenta o petista.
Para suportar a rotina intensa, o ex-pugilista pratica atividade física três vezes por semana, durante uma hora, sob supervisão profissional. O desejo de ver seu sonho realizado é o combustível para se manter ativo aos 81 anos.
"Estou procurando conversar com Deus para que eu possa ter uma boa saúde, para ver, ainda durante a minha vida, a renda básica de cidadania aplicada de maneira universal e incondicional no Brasil e em muitos países do mundo", conta Suplicy.
DW: O senhor se elegeu deputado estadual por São Paulo com votação recorde. Que recado as urnas transmitem com esse resultado?
Eduardo Suplicy: Tenho a convicção de que se trata da aprovação de uma pessoa que tem tido por objetivo estudar aqueles instrumentos de política econômica que possam contribuir para a construção de uma sociedade justa, fraterna, solidária. Desde a minha adolescência, com a vontade de me tornar professor de economia, e ao longo desses anos na vida pública, dediquei-me sobretudo a isso e aos objetivos de lutar pela efetiva democratização do país, com eleições livres e diretas. Foi assim quando participei da campanha Diretas Já e de atos para que sempre tivéssemos a correção por parte dos governantes, defendendo as normas de transparência, os princípios éticos e os instrumentos de política econômica e social que possam ser colocados em prática, como o papa Francisco tem conclamado a todos os povos.
Embora Lula tenha sancionado a lei, a universalização da renda básica não foi efetivada em seu governo, tampouco pela ex-presidente Dilma. Falta prioridade ao projeto?
O presidente Lula sancionou a lei há 18 anos, em 8 de janeiro de 2004. No dia em que eu completei 80 anos, em 21 de junho de 2021, eu tive um diálogo com o presidente Lula, transmitido nas minhas redes sociais. Foi um presente que ele me deu. Nesse encontro, eu digo que vou apoiá-lo nas eleições deste ano, e ele diz que vai aplicar a renda básica até chegar a sua universalidade e incondicionalidade. Portanto, eu não tenho do que me queixar dele. Quero muito apoiar o presidente Lula nesse propósito, assim como o nosso candidato ao governo de São Paulo, Fernando Haddad, para serem eleitos no próximo dia 30 de outubro.
O senhor roubou a cena ao invadir o evento de lançamento do programa de governo do Lula, em junho, contestando o pouco destaque ao projeto da renda básica. Você se sente desprestigiado no partido?
Naquele dia, a organização do PT tinha deixado de convidar os oito vereadores do partido em São Paulo para o lançamento do programa. Eu soube por um grande amigo, o babalorixá Rodney William, e resolvi ir. Lá, o coordenador do programa econômico de governo do PT, Aloizio Mercadante, com quem sempre me dei bem, anunciou cerca de 15 grandes metas do programa de governo. Em nenhuma delas estava inserida a palavra renda básica universal. Então, eu tive aquela reação muito forte, porque fiquei preocupado: como isso não está no programa do partido, um projeto de lei sancionado pelo presidente Lula, sendo que ele me disse, em diálogo comigo, que ele vai implantar? Como é que não está com destaque no programa?
Daí, o Aloizio Mercadante me deu o programa de governo que ele estava apresentando e mostrou que, no item 21, estava escrito que o governo do presidente Lula iria instituir um novo programa Bolsa Família, mas com vistas a chegar à implantação da renda básica de cidadania universal e incondicional. Portanto, estava no plano, mas eu não tinha visto ainda. Aquilo causou uma repercussão, mas eu achei que foi justa a minha interpelação a ele, porque não estava dando destaque àquilo que eu considero um dos pontos mais importantes do programa.
Você sente falta de uma defesa mais enfática do projeto por parte de Lula?
No dia 8 de outubro, houve uma caminhada que terminou em um comício em Campinas. Havia muita gente, cerca de 20 mil pessoas. Em seu discurso de encerramento, o presidente Lula ressaltou seis programas importantes que ele vai implantar, uma vez sendo eleito presidente. E ele não mencionou a renda básica de cidadania. Eu transmiti a ele logo depois, conversando numa boa, que eu gostaria que, em um próximo pronunciamento, ele coloque a renda básica de cidadania dentre os principais temas do seu programa. Lembrei a ele: você disse que iria defender, está no programa de governo do PT e eu acredito que precise ser mencionada. Ele falou para ele ficar calmo, que no próximo comício ele iria me chamar para falar a respeito. Só que os comícios estão sendo feitos em diversos lugares do Brasil, e nem sempre eu vou poder estar ao lado dele. Eu não tenho do que me queixar dele, mas eu insisto que ele venha a considerar, sim. Eu quero contribuir para que isso ocorra até o dia 30, até porque eu considero que esse posicionamento vai ajudá-lo na campanha.
No Senado Federal, onde o senhor esteve por 24 anos, o bolsonarismo se fortaleceu ao conquistar um número significativo de cadeiras. Como você vê a consolidação de grupos conservadores radicais na política nacional?
Ao longo de mais de 42 anos de convivência em diversas casas legislativas, da Câmara dos Vereadores ao Senado Federal, eu sempre procurei agir com todo o respeito e diálogo, defendendo as minhas ideias e também ouvindo com atenção as ideias dos demais parlamentares. É um aprendizado. Fui da situação e da oposição por vários anos. É como hoje, aqui na Câmara Municipal de São Paulo, onde eu procuro ouvir com atenção e sou ouvido com atenção e resppeito pelos meus colegas vereadores, mesmo dos partidos aos quais eu sou oposição.
São muitos exemplos construtivos que eu tive ao longo da minha vida, como da vez em que apresentei o projeto para instituir a renda básica incondicional para todos os brasileiros e brasileiras, inclusive para os estrangeiros aqui residentes há cinco anos ou mais. O senador designado relator do projeto foi o Francelino Pereira, ex-presidente da Arena, ex-governador de Minas Gerais e um dos opositores. Mas eu tinha uma relação de respeito para com ele, que me disse: "Olha, Eduardo, eu estou com 81 anos, não serei mais candidato, mas eu quero estudar seriamente o seu projeto."
Então, eu lhe dei o meu livro Renda de Cidadania: a saída é pela porta, que estava na sua primeira edição, lançada em fevereiro de 2002. Ele leu a proposta com seriedade e disse a mim: "Eduardo, é uma boa ideia, mas você precisa torná-la compatível com a Lei de Responsabilidade Fiscal, pela qual para cada despesa precisa haver a receita correspondente. Que tal você aceitar um parágrafo que diz que ela vai ser instituída por etapas, a critério do Poder Executivo, começando pelos mais necessitados, como fazia à época o Bolsa Família?"
Eu aceitei a sugestão do senador Francelino Pereira. Graças a ela, em dezembro de 2002, o Senado Federal, por consenso de todos os partidos, aprovou a lei que institui a renda básica de cidadania universal. Em novembro de 2003, a Câmara dos Deputados, estando lá presente o deputado Jair Bolsonaro – que nada falou contra e votou a favor. Dali, foi para a sanção do presidente Lula. Eu procurei o então ministro da Fazenda, Antônio Palocci, que disse ao presidente Lula: como é para ser instituído por etapas, é factível, pode sancionar.
Quando estava na oposição aos governos petistas, Bolsonaro fez duras críticas ao Bolsa Família. Na busca pela reeleição, o presidente deu sua assinatura ao programa e turbinou o agora Auxílio Brasil às vésperas da eleição. Como é, para o senhor, ver esse instrumento ser utilizado de forma eleitoreira?
Quisera eu ter conseguido persuadir também o Jair Bolsonaro e o Paulo Guedes de que a renda básica universal é uma boa coisa, já aprovada pelo Congresso e que poderia ser instituída desde o primeiro mês. E olha que eu tentei. Em uma audiência pública na Câmara dos Deputados, o deputado Paulo Teixeira questionou o Paulo Guedes a respeito do combate à pobreza, e ele chegou a falar na renda básica que o Suplicy defende e que, quem sabe, a gente poderia chegar a um entendimento. Há economistas, como o próprio professor dele, Milton Friedman, que também defende a garantia da renda mínima através de um imposto de renda negativo. Mas o Paulo Guedes nunca se interessou em se aprofundar e estudar o tema.
Quando houve aquela reunião ministerial em que o ex-ministro Ricardo Salles falou em aproveitar para passar a boiada, o presidente Jair Bolsonaro disse que queria distribuir armas para todo o povo brasileiro. Eu fiquei impressionado, porque sigo as recomendações de meu pai. Eu sou o oitavo de 11 filhos e filhas. Ele dizia que na nossa casa nunca iria haver armas, pois conhecia diversas famílias onde, certo dia, os meninos foram brincar, um deles pegou uma arma no armário do pai e matou o primo. Então, nunca tive armas em casa. Quando o presidente disse que estava com covid e precisava ficar pelo menos duas semanas isolado em casa, eu pensei: "Quem sabe ele possa ter um tempo para ler e aprender alguma coisa."
Mandei para ele de presente o Utopia, de Thomas More, considerado um dos grandes pensadores da história, tendo apresentado os fundamentos da defesa da renda básica. Em uma passagem do livro, ele reflete sobre como a garantia de uma renda poderia ser mais eficaz para combater a criminalidade violenta do que a pena de morte, incapaz de reduzir os indicadores na Inglaterra do século 16. O gabinete do presidente agradeceu o presente, mas não disse que ele tenha lido. Ou seja, eu tentei procurar ensinar a ele, mas acho que ele não quis aprender.
Como está a sua disposição para mais um mandato de quatro anos?
É muito importante, a cada um de nós, cuidar da saúde. Desde menino, adolescente, eu fiz exercícios, fiz todos os tipos de esporte. Gosto muito de nadar até hoje. Eu estou com toda a vontade de continuar essa batalha e faço, com o maior prazer, diálogos e conferências sobre esse tema sobre o qual conversamos. Estou procurando conversar com Deus para que eu possa ter uma boa saúde, para ver, ainda durante a minha vida, a renda básica de cidadania aplicada de maneira universal e incondicional, no Brasil e em muitos países do mundo.