Arte e luta social
9 de dezembro de 2011"Buscar-te no passado que chega amanhã", canta Liliana Felipe em seu álbum Matar ou não matar, no qual condena os crimes cometidos pela ditadura na Argentina (1976-1983). A compositora se exilou no México durante a ditadura em seu país e ainda luta, através de sua música, para que o regime "que matou 30 mil pessoas e matou um país que começa a se recuperar" não seja esquecido.
Com a canção Nos tienen miedo porque no tenemos miedo (Nos temem porque não temos medo), o trabalho dela se converteu em símbolo da luta contra a impunidade e pelos direitos humanos. "Pode-se fazer muitas coisas boas com a música, como por exemplo apoiar a iniciativa da Hijos (Filhos pela Identidade e a Justiça e contra o Esquecimento e o Silêncio)", diz a cantora.
"Ela [Liliana] é parte desse movimento de direitos humanos, já que, da sua posição de vítima, sabe construir um espaço de luta e dignidade", opina Agustín Centrángolo, um dos membros da Filhos e Filhas pela Identidade e Justiça contra o Esquecimento e o Silêncio.
"A raiva convertida em esperança reflete sua arte": assim Centrángolo descreve o trabalho de Liliana. Para ele, a Hijos está renovando, desde 1995, a abordagem sobre o terrorismo de Estado a partir de uma visão própria e uma linguagem diferenciada.
Agustín, que também é parente de desaparecidos, chegou à Hijos com sua irmã. "Entrar na Hijos fez com que eu me colocasse em contato comigo mesmo e com os outros companheiros e companheiras marcados por uma história comum", diz. A organização vem desenvolvendo uma nova forma de protesto desde 1995: o "escrache".
Trata-se de uma expressão artística que ganhou importância como forma de resistência. Consiste na denúncia através de grafitagem, manifestações com pessoas sentadas e esquetes teatrais em frente à casa ou ao lugar de trabalho de pessoas acusadas de violações aos direitos humanos. "O escrache é usado para expor num palco aqueles que se pretende esconder com a impunidade", explica Agustín.
Uma nova etapa na confrontação com o passado
A partir de 2006, durante o governo de Néstor Kirchner, a Argentina acabou com a impunidade dos responsáveis pela ditadura militar. Criou-se uma nova forma de abordagem e apuração dos crimes cometidos nesse anos.
A Argentina viu, em 2007, um recorde mundial na quantidade de processos penais contra violações de direitos humanos, que tiveram uma enorme influência em muitos setores da sociedade, tanto no âmbito político como no cultural. Liliana ressalta que "os julgamentos nos ajudam a ver a dimensão do desastre provocado pela inaptidão dos militares".
Tanto pelos debates televisivos como no Facebook, o tema dos desaparecidos está na ordem do dia na Argentina, o que aprofunda e difunde o enfrentamento cultural com o passado. E isso não somente na Argentina.
"Na literatura latino-americana, há algumas décadas produz-se uma confrontação muito enriquecedora com o legado das ditaduras, que também é assumido pela geração de autores jovens", explica Anika Oettler, docente do Instituto de Sociologia da Universidade de Marburg, no estado alemão de Hesse.
O passado violento é também o tema central de diversas obras cinematográficas latino-americanas. Filmes como Machuca (2004), do diretor chileno Andrés Wood, ou Garage Olimpo (1999), do argentino Marco Bechis, também obtiveram grande reconhecimento, inclusive na Europa. "Esses filmes são um bom exemplo de uma interpretação altamente emocional do tema, mas frequentemente só chegam ao conhecimento de um público relativamente pequeno", lamenta a socióloga.
Qual é o papel da cultura na abordagem da história?
A elaboração da ditadura também chegou ao sistema educacional e acadêmico. "Gerou-se um profundo debate, não somente no âmbito educacional como também no seio de cada família. Deve-se reconhecer que avançamos incrivelmente nesta última década", opina Centrágolo.
Oettler, que também é colaboradora do Instituto de Estudos Latino-Americanos (Ilas) de Hamburgo, opina, por outro lado, que "enquanto o enfrentamento com o passado é um tema muito importante na produção cultural, na transmissão do conhecimento educativo ele tem um papel marginal".
A pesquisadora, que publicou vários trabalhos sobre a elaboração do passado na América Latina, comenta que "as imagens da história não surgem somente através de formas oficiais da memória, mas primordialmente graças a formas culturais de interpretação do passado".
Centrángolo explica o poder do "escrache" assinalando que "a arte é sempre uma boa arma para expressar aquilo que não se encaixa, que rompe o esquema, neste caso o esquema do silêncio".
O papel que tem a produção cultural na revisão da memória histórica é chave porque permite chegar a todos os setores da sociedade. "O humor e a ficção são estimulantes importantes para a memória", diz Centrángolo. "O que distingue o escrache é que se instala naqueles lugares onde há impunidade, onde a justiça não intervém quando deveria", diz o membro da Hijos.
O papel da sociedade civil argentina: um modelo para a América Latina?
"A justiça é o farol. O escrache, uma forma de andar", filosofa Centrángolo. Com o "escrache", a Hijos gerou uma grande condenação social aos crimes da ditadura, e não somente na Argentina. A organização, como movimento de direitos humanos, conta com vários agrupamentos em diversos países, tanto na América Latina como também na Europa. "A visão latino-americana do caso argentino se baseia no papel ativo que é o modelo das organizações de familiares desaparecidos", comenta Anika Oettler.
Assim como as Mães da Praça de Maio, com seus lenços brancos, se tornaram um símbolo na luta contra o desaparecimento forçado de pessoas, também "as atividades da Hijos têm imitadores em outros países", sublinha Oettler.
Centrángolo explica que "a tarefa da rede internacional da Hijos é transmitir nossa história para colaborar com a construção de um fio condutor em todo o continente no que diz respeito à repressão, ao desaparecimento forçado e ao genocídio, mas também no que diz respeito às lutas populares e sua organização".
Centrángolo comenta também que o caso argentino deixa clara a coordenação das distintas ditaduras em todo o Cone Sul através da Operação Condor. "É por isso que a luta por memória, verdade e justiça, que já tem uma trajetória e um reconhecimento importantíssimo na Argentina, repete-se nos distintos países onde o terrorismo de Estado foi ou é uma prática cotidiana".
Liliana diz, referindo-se ao país que a acolheu durante o seu exílio, que no México houve matanças e massacres anteriores aos da Argentina, mas a corrupção das instituições faz com que se fale pouco do tema, um fenômeno que se dá também em outros países.
É claro que muita coisa depende do papel central que compete à Justiça. Porém, sem a participação ativa da sociedade e sem os fenômenos culturais que surgem dela, não será possível avançar na recuperação da memória histórica coletiva sobre as ditaduras militares nos países latino-americanos.
Autora: Nadja Wallraff (mp)
Revisão: Alexandre Schossler