Que efeitos teria um acidente na usina nuclear de Zaporíjia?
Publicado 23 de novembro de 2022Última atualização 9 de março de 2023Quando se pensa em ameaças nucleares e na guerra na Ucrânia, a maioria considera duas possibilidades: o que aconteceria se ocorresse um acidente em uma usina nuclear ucraniana? E o que aconteceria se uma arma nuclear fosse utilizada?
Mais de um ano após o início da guerra, a usina nuclear de Zaporíjia continua sendo um dos principais alvo de ataques. Bombeiros russos em 9 de março causaram novamente interrupções no fornecimento de energia para a usina. Com isso, geradores a diesel foram acionados para evitar uma catástrofe nuclear.
Desde o início da guerra, o diretor da Agência Internacional de Energia Atômica (AIEA), Rafael Grossi, tem pedido a criação de uma zona de proteção em torno da usina, que foi tomada pela Rússia. Depois do ataque mais recente, ele fez um alerta que, se nada for feito para proteger o local, a "sorte acabará um dia".
Para produzir esta reportagem, conversamos com especialistas sobre o impacto que os desastres de Fukushima, no Japão, e de Tchernobil, na Ucrânia, tiveram na saúde das populações vizinhas, e pedimos que explicassem até que ponto essas catástrofes poderiam ajudar a compreender o risco em Zaporíjia.
Zaporíjia ocupada
A usina de Zaporíjia não fica muito longe da fronteira sul da Ucrânia. Com seis reatores, ela é a maior usina nuclear da Europa. Em 2022, tornou-se a primeira usina nuclear ativa a continuar operando em meio a uma guerra.
Desde que as forças russas a tomaram, em março, muitos europeus têm se perguntado como um potencial acidente na área poderia ser comparado ao de Tchernobil, em 1986 – um evento que por décadas foi considerado o pior acidente nuclear da história. O desastre de Tchernobil liberou radiação por todo o continente e contaminou humanos, plantas e animais.
Nos três meses seguintes ao acidente na usina soviética, mais de 30 trabalhadores morreram como consquência direita dele. Um relatório publicado pelo Fórum de Tchernobil, um grupo de agências da ONU formado em 2003 para avaliar as consequências sanitárias e ambientais do desastre, sugeriu, em 2006, que ele ainda causaria ao menos 4 mil mortes por câncer no longo prazo, embora essa estimativa seja contestada.
Controvérsia sobre efeitos de Thernobil
Alguns especialistas dizem que o real impacto de Thernobil foi mascarado por autoridades soviéticas numa tentativa de minimizar sua gravidade. É o que acredita a professora Kate Brown, do Instituto de Tecnologia de Massachusetts (MIT). Ela conduziu uma extensa pesquisa sobre o impacto que a radiação teve sobre a saúde das pessoas na Ucrânia e nos países vizinhos desde o acidente.
Em um relatório do Greenpeace publicado em 2006, pesquisadores estimaram o número de mortes em consequência do desastre em cerca de 90 mil – mais de 20 vezes mais do que havia sido sugerido pelo relatório do Fórum de Thernobil.
Edwin Lyman, físico e diretor de Segurança de Energia Nuclear da Union of Concerned Scientists, com sede nos Estados Unidos, diz que "não considera o relatório do Fórum de Thernobil confiável".
Lyman afirma que esse levantamento baseou suas projeções de morte por câncer apenas em casos dentro da antiga União Soviética, ignorando populações de outras partes da Europa e do Hemisfério Norte.
O relatório original sobre Thernobil e o seu impacto na saúde, conduzido por agências da ONU e publicado em 1988, abordou a exposição global à radiação em resposta ao acidente, e estimou que ela responderia, no fim, por 30 mil ou mais mortes por câncer, segundo Lyman.
"A questão fundamental é acreditar ou não que exposições de baixo nível [à radiação] causam câncer – e o consenso mundial entre os especialistas é de que sim. O Fórum de Thernobil afirma essencialmente o contrário", diz, chamando o estudo de um "documento altamente político com conclusões que foram cuidadosamente massageadas para minimizar os impactos do acidente".
Estudos com os sobreviventes do desastre de Thernobil mostraram aumento nos casos de câncer de tireoide. Nas décadas seguintes ao acidente, pesquisadores detectaram taxas dessa condição cerca de três vezes maiores do que o esperado em jovens da antiga União Soviética. De acordo com as pesquisas, esse aumento é parcialmente atribuído ao consumo de leite contaminado.
No entanto, conforme Lyman, os maiores estudos para delinear o risco geral de câncer foram publicados no início dos anos 2000, época em que muitos casos da doença provocados pelo desastre de Tchernobil poderiam ainda não ter se manifestado. E, em torno de 20 anos depois, não houve nenhum acompanhamento completo desses relatórios.
Estudos sobre o impacto de Thernobil na saúde também apontam altos índices de depressão e ansiedade na população de áreas próximas.
Fukushima, uma melhor comparação
De acordo com Lyman, qualquer precipitação radioativa a partir de um possível acidente na usina de Zaporíjia provavelmente teria mais em comum com as consequências do desastre nuclear de Fukushima, no Japão, em 2011.
"As consequências que levaram a uma dispersão tão grande e ampla da atividade radioativa [em Thernobil] são possivelmente menos prováveis de ocorrer em Zaporíjia, que tem reatores de água leve, mais parecidos com os reatores existentes na Alemanha ou em outros lugares do Ocidente", argumenta.
O acidente nuclear em Fukushima marca, junto com Thernobil o único desastre em uma usina que foi classificado como "sete" na Escala Internacional de Eventos Nucleares da Agência Internacional de Energia Atômica. O desastre foi provocado por um forte terremoto seguido de um tsunami que levou a usina a ficar sem energia, provocando três fusões nucleares, explosões de hidrogênio e grande liberação de radiação.
Relatórios oficiais concluíram que, embora muitas pessoas tenham morrido devido ao tsunami e ao terremoto, nenhuma morreu diretamente por causa do acidente nuclear. Além de doenças causadas pela radiação na população vizinha à Fukushima, o maior impacto na saúde ainda tem sido o estresse psicológico experimentado pelas pessoas que foram evacuadas da área.
Atualmente, pesquisadores dizem que o acidente em Fukushima deixou apenas uma pequena marca no ambiente próximo, porque grande parte da radiação foi liberada no mar.
"Obviamente, Zaporíjia não tem saída para o mar, portanto, não seria esse o caso [de liberar radiação na água]. Mas, ainda assim, seria de se esperar, provavelmente, menos material radioativo liberado e dispersado", diz Lyman.
Lyman acrescenta que o nível de radiação liberado a partir de um possível acidente em Zaporíjia dependeria do fato de o acidente ser técnico (por exemplo, uma consequência da perda de energia no prédio por vários dias) ou relacionado a combate, caso em que a radiação seria liberada mais rapidamente. Em uma situação como essa, a gravidade de quaisquer consequências provavelmente ficaria em algum lugar entre o que aconteceu em Thernobil e o que aconteceu em Fukushima, diz.
"Acho que a probabilidade de outro evento como o de Thernobil afetar a Alemanha, por exemplo, é menor. Haveria, provavelmente, impactos consideráveis, mas não tão grandes quanto os que foram vividos em 1986", afirma Lyman.
Outros reatores também representam risco
Zaporíjia tem chamado muito a atenção porque atualmente é a única usina nuclear na Ucrânia sob controle direto russo. Mas Lyman mostra-se também preocupado com outras usinas, que são mais antigas, no país. Isso as torna ainda mais suscetíveis a consequências catastróficas no caso de um acidente.
"Há três outras usinas nucleares na Ucrânia que estão muito mais próximas da fronteira ocidental. Portanto, elas estão longe do fronte, mas ainda assim ao alcance de mísseis ou drones russos", diz.
Embora nenhum desses reatores seja do mesmo modelo que os de Thernobil, argumenta Lyman, alguns são antigos reatores soviéticos de água leve, que não seriam tão resistentes a um ataque como os da usina de Zaporíjia.
"Se as usinas se tornarem mais acessíveis para ataques, isso poderia ser uma preocupação maior para a Europa Ocidental", conclui.