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Quando um boicote de teor político deixa de ser legítimo?

11 de novembro de 2022

Após a eleição, listas com nomes de comerciantes "esquerdistas" surgiram na internet, gerando até ameaças de morte por bolsonaristas. Boicotes podem ser válidos, mas têm limites éticos e legais, alertam especialistas

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Toalhas de Lula e Bolsonaro penduradas para venda na rua
Foto: Silvia Izquierdo/AP/picture alliance

Desgostosa com a derrota do presidente Jair Bolsonaro (PL) nas urnas, uma parcela radicalizada de seu eleitorado tem organizado listas de boicote a pequenos empresários e profissionais liberais em diversas cidades no interior do Brasil.

Tachados de "comunistas" ou "petistas", esses empresários foram expostos em redes sociais como o Twitter e o Instagram, mas seus nomes circulam principalmente em conversas privadas no WhatsApp e no Telegram. Além de prejuízo financeiro, há relatos de intimidações e até ameaças de morte.

É o caso de Chirley Nunes, dona de um comércio de pequeno porte na cidade de Resende (RJ). Na noite da apuração, a empresária havia publicado em suas redes pessoais um vídeo em que comemorava a derrota de Bolsonaro e criticava seus eleitores. Dois dias depois, passou a receber as primeiras ameaças, que chegam por ligações no celular e no WhatsApp, pelas redes sociais e por e-mail. Amedrontada, ela não saiu mais de casa desde então.

O vídeo de Nunes foi republicado dezenas de vezes por apoiadores do presidente. Um dos conteúdos localizados pela reportagem citava o endereço do estabelecimento comercial dela, junto com a convocação: "Vamos deixá-la famosa".

A empresária foi xingada, ouviu de pessoas que seria levada à falência e teve trabalhos cancelados. Mas o que mais a preocupa são as ameaças de morte. "Dizem coisas do tipo: 'Depois ela aparece morta e não sabe por quê'. Estão parando carros com a bandeira do Brasil, com os vidros escuros, em frente à minha loja."

Ela denunciou o caso à polícia e está sendo acompanhada por um escritório de advocacia. Continua tocando a empresa remotamente com a ajuda de uma funcionária.

"Tem um pessoal que estava fazendo manifestação aqui em frente à Aman [Academia Militar das Agulhas Negras]. O líder deles queria ir para a frente da minha loja fazer buzinaço. Uma pessoa que participa também e é minha amiga bateu de frente, disse que não aceitaria porque me conhece, sabe da minha índole."

A empresária, que é homossexual e nordestina, diz que evitou se posicionar politicamente em suas redes pessoais justamente para evitar conflitos – a cidade de Resende, com forte presença militar, deu 61,86% dos votos a Bolsonaro. "Eu não tinha que ter gravado esse vídeo", desabafa. Mas, logo em seguida, hesita. "Não sei se tinha ou se não tinha, porque tem a questão de a gente ter a liberdade de falar o que quer, o que pensa."

Táticas de intimidação põem legitimidade de boicotes em cheque

Professora de pesquisa e comportamento do consumidor da ESPM Rio, Karine Karam ressalta que o boicote perde a legitimidade quando restringe a liberdade de expressão e descamba para a ameaça, com riscos à integridade física do empresário, de seus funcionários, seus bens patrimoniais ou pessoas associadas à empresa. "Aí deixa de ser movimento anticonsumo e vira movimento extremista", afirma.

Para Karam, é legítimo que consumidores considerem questões políticas na hora de fazer uma compra. "Se eu não me identifico com aquela marca, não vou consumir aquele produto." Ela exemplifica citando o caso de grandes empresas que passaram a adotar práticas mais sustentáveis e éticas para agregar valor. "Quando uma empresa faz algo que afeta o meio ambiente ou uma comunidade e o consumidor se vê no direito de se mobilizar e fazer uma campanha anticonsumo, ele está se expressando, mostrando sua indignação", pontua.

É por isso que, segundo a professora, algumas empresas hesitam em se posicionar politicamente. No caso de pequenos empresários, porém, essa ação ganha contornos mais dramáticos. "Há uma linha tênue entre o movimento anticonsumo e o movimento antidemocrático, principalmente para o pequeno comerciante, que personifica a marca que está representando. Vira um movimento, quase de sufocamento, para que ele mude de opinião", afirma.

Pequenos comerciantes "tirados do armário político"

Professor do Departamento de Estudos da Mídia da Universidade de Virgínia, nos Estados Unidos, David Nemer diz ver uma grande diferença entre empresas que optam por se posicionar publicamente e pequenos e médios empresários que têm seus posicionamentos individuais expostos à revelia, "tirados do armário político", independente do candidato no qual votaram.

Enquanto o primeiro caso pode ser uma jogada de marketing, o segundo afeta negócios que mal têm condições de bancar os custos de uma assessoria jurídica e publicitária. Ele pondera que, em meio à crise econômica e com o país tão dividido politicamente, abrir mão de uma parcela relevante da clientela não é interessante para os empresários, especialmente os pequenos e médios.

"Se o dono de uma padaria vota em Bolsonaro, acho errado colocar ele numa lista de boicote. É claro que se ele se vê no direito de colocar a padaria dele apoiando o Bolsonaro com faixas e bandeiras, ele já sabe que vai repelir as pessoas que não concordam com ele. Mas se não está fazendo isso, é porque não quer afetar o negócio dele", argumenta Nemer.

Para ele, quem consome tem o direito de fazer escolhas – inclusive baseadas em opiniões políticas. Boicotes podem ser legítimos em casos extremos, quando há clara quebra dos valores éticos de uma sociedade. "O que não pode ter é essa orquestração e essas campanhas de linchamento tanto virtual quanto público, principalmente quando o negócio não tomou posição política pública."

Pressão para ostentar símbolos

Uma mensagem que circula entre apoiadores de Bolsonaro conclama empresários eleitores do presidente eleito, Luiz Inácio Lula da Silva (PT), a ostentar a estrela vermelha, símbolo do partido, nos seus estabelecimentos comerciais. "Atenção, petistas: coloquem esse adesivo na porta do seu negócio. Mostre que você tem orgulho de quem elegeu."

Em um contexto de violência política, a exortação desperta em comerciantes não só o medo de sofrerem prejuízo financeiro, como também ataques violentos e atos de vandalismo.

Em entrevista ao portal UOL, o coordenador do núcleo de estudos judaicos do Departamento de Sociologia da UFRJ, Michel Gherman, afirmou ver no meme uma reprodução da linguagem nazista – algo, segundo o pesquisador, "típico do bolsonarismo".

No início da década de 1930, o regime nazista encorajou boicotes a estabelecimentos comerciais de pessoas judias, numa escalada de ódio antissemita que mais tarde culminaria em saques e atos violentos.

Há também relatos de grupos organizados que têm constrangido pequenos comerciantes, pressionando-os a exibir a bandeira do Brasil.

Entidades e advogados também são alvo

O clima de animosidade e beligerância não poupou nem mesmo entidades beneficentes, como a Associação de Pais e Amigos dos Excepcionais (Apae) em Ijuí (RS), que atende pessoas com deficiência, e a Uipa em Itapetininga (SP), uma entidade de proteção dos animais. Carimbadas como esquerdistas, ambas as organizações se pronunciaram reforçando que seus funcionários e voluntários são livres para se posicionar politicamente a nível individual.

A Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) de São Paulo afirma já ter recebido queixas de dezenas de advogados em cidades do interior paulista incluídos nas listas de boicote. Vice-presidente da entidade, Leonardo Sica afirma que quem espalha as listas pode responder judicialmente por danos morais e materiais.

Sica explica que o movimento "extrapola o direito de crítica porque atinge a reputação profissional de pessoas, empresas e comércios, cerceando atividade profissional de alguém", e pode ter consequências especialmente nefastas em cidades pequenas.

"As pessoas podem boicotar. Eu contrato o serviço que eu quiser, mas é uma decisão minha. O que eu não posso fazer é coordenar uma ação orquestrada contra determinado profissional", ressalta.