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Vamos deixar Amber Heard em paz e combater o retrocesso

Julia Hitz
3 de junho de 2022

Processo Depp vs. Heard não revelou apenas uma relação hollywoodiana tóxica, mas também uma misoginia em nível global. Avanços sociais como o feminismo estão periodicamente na mira dos retrógrados, opina Julia Hitz.

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Amber Heard recebe veredito de processo aberto por ex-marido Johnny Depp
Amber Heard (c.) recebe veredito de processo aberto por ex-marido Johnny DeppFoto: Evelyn Hockstein/AP/picture alliance

Quem diria que a emissora jurídica americana Law&Crime um dia apresentaria tamanhas taxas de audiência? Nas últimas semanas, acompanhar os pontos altos do processo Depp vs. Heard tornou-se item obrigatório dos rituais de fim de dia de muita gente, por todo o mundo. Finalmente poder saber como, por trás das portas fechadas de Hollywood, se lava a roupa suja (neste caso, também de fezes).

Mas, um momento: aqui se trata, na verdade, da decisão jurídica sobre se Amber Heard acusou injustamente seu famoso ex-marido de violência doméstica, trata-se de um processo por difamação.

O júri deu razão a Johnny Depp na maioria dos quesitos. Essa – suposta – vitória é agora pretexto para negar toda credibilidade à atriz de 36 anos em colunas de opinião ou feeds do Twitter, sob a hashtag #AmberHeardIsALiar ("Amber Heard é uma mentirosa"). Sim, ela é até responsabilizada pelo suposto fracasso do movimento mundial #MeToo. Isso não é apenas desproporcional, é perigoso.

Backlash, a ameaça recorrente

O termo inglês da moda backlash (literalmente "golpe para trás") designa uma concentração de esforços voltados a combater dinâmicas consideradas progressistas. Por exemplo: foi descrito e analisado o backlash contra o movimento dos direitos civis nos Estados Unidos, manifestado também nos grandes protestos contra o fim da separação de raças, nos anos 1950.

A jornalista americana Susan Faludi, portadora do Prêmio Pulitzer, descreveu no início dos anos 90 o backlash antifeminista direcionado contra os direitos conquistados pelas mulheres. Segundo ela, os meados do século 19, a virada do século e depois as décadas de 40 e 70 foram momentos de retrocesso que fizeram sucumbir os esforços feministas.

Não é difícil reconhecer que no momento os EUA se encontram em pleno backlash antifeminista: a Suprema Corte ameaça retirar direitos centrais, como ao aborto, consagrado em 1973. Em maio, as ruas do país se encheram de cidadãs e cidadãos, em protesto, horrorizados com a investida do tribunal.

#MeToo não foi criado para proteger privilegiadas/os

Esse retrocesso também se manifesta nas reações ao processo Depp vs. Heard. A ré foi atacada por todos os lados. Contudo – ao lado dos que simplesmente não querem que se danifique a imagem do seu pirata simpático-excêntrico, e dos que preferem atirar pedras contra uma jovem bem-sucedida do que contra um homem de quase 60 anos bem-sucedido – há aqueles que querem fazer o relógio rodar para trás. Aqueles para quem, muito antes desse processo, o #MeToo já era uma pedra no sapato.

Esse sentimento está bem documentado: lá onde, devido a insignificâncias, contradições e inconsistências nos depoimentos de Heard, já se proclama o fim do #MeToo (e lá onde comentaristas se mostram excessivamente ávidas/os em aderir a esse ponto de vista). Nas próximas semanas e meses será preciso prestar atenção em quem, invocando o processo, tenta silenciar movimentos inteiros.

O movimento – que, sob a hashtag #MeToo, forneceu uma plataforma e uma voz a vítimas de violência de cunho sexual (spoiler alert: a maioria são mulheres!), que ofereceu consolo através de um senso de comunidade – deslocou relações de poder reais. Ele deu poder e força às mulheres ao ponto de muitas iniciarem e executarem ações judiciais.

O grupo-alvo não eram celebridades brancas bem situadas, mas sim mulheres de grupos marginalizados, muitas vezes marcadas pelo racismo, dispondo de parcos recursos, espaços protegidos ou apoio para se defender. A condenação de Harvey Weinstein foi uma manifestação admirável desses deslocamentos de poder. Mas ela não é o cerne do problema.

Na maioria dos casos, as denúncias são mais do que justificadas. Violência sexualizada e doméstica é um problema real. E nesse ponto, o processo Depp vs. Heard nada mudará, de fato. O que pode deslocar algo, contudo, é sua exegese, sua interpretação, sua instrumentalização sob o signo do backlash antifeminista.

Como não contribuir para o retrocesso

Quatro recomendações para não cair nessa armadilha:

Primeiro: O processo Depp vs. Heard não tratou do movimento #MeToo. Seu resultado não significa que as acusações de violência sexualizada e domésticas possam ser descreditadas.

Segundo: Os homens (mesmo os tão pobres quanto Johnny Depp) não precisarão de proteção especial no futuro. Pois em nossas sociedades patriarcais eles já são protegidos e privilegiados, não necessitam um #MeToo. Por outro lado, enquanto vítimas de violência doméstica e sexual, é óbvio que estão incluídos no movimento, como enfatizava Tarana Burke, iniciadora do #MeToo, já em 2006.

Terceiro: Massacrar Amber Heard na mídia é contraproducente. Uma atriz de 36 anos será agora responsável por não mais se poder acreditar nas vítimas de violência sexual? Quem defende essa tese está precisando fazer uns exames médicos.

E quarto: Chega de xingamentos! Misoginia é sempre misoginia e precisa ser combatida tanto no nível individual quanto social. Tachar Heard de "monstro", "piranha", "bruxa" é misógino, ofensivo e indigno, tanto online quanto na vida real. Enquanto marido, ex-marido e homem. Enquanto mulher. Enquanto ser humano.

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Julia Hitz é jornalista da DW. O texto reflete a opinião pessoal da autora, não necessariamente da DW.