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Um capítulo pouco honroso para George H.W. Bush

Isaac Mugabi
5 de dezembro de 2018

Enquanto EUA se despedem do ex-presidente, na África ele é lembrado sobretudo pela tentativa fracassada de estabilizar a Somália. Um fiasco que redefiniu a relação entre americanos e o continente, opina Isaac Mugabi.

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Presidente George H.W. Bush (c.) visita tropas americanas na Somália em 1993
Presidente George H.W. Bush (c.) visita tropas americanas na Somália em 1993Foto: picture-alliance/AP Photo/J. Moore

Enquanto muitos enalteceram George H.W. Bush em suas eulogias por ter configurado a política mundial em tempos turbulentos, no continente africano, a morte do ex-presidente americano recebeu pouca atenção, com exceção de alguns chefes de Estado que enviaram seus pêsames pelo Twitter.

Apenas os presidentes do Quênia e de Uganda expressaram imediatamente tristeza pelo falecimento de Bush pai e ressaltaram quão fortemente sua falta seria sentida. Também houve pouca cobertura jornalística sobre o funeral na África, talvez devido à política fracassada do ex-líder para o continente.

No domingo, o presidente somaliano, Mohamed Abdullahi Mohamed, preferiu não insistir no passado. Numa breve declaração, manifestou "condolências sentidas", descrevendo Bush como um verdadeiro homem de Estado, comprometido com a paz mundial e a salvaguarda da democracia.

No entanto, a morte do republicano reacendeu um debate entre os somalis sobre a presença dos Estados Unidos no país, na década de 1990. Para alguns, foi uma oportunidade de recordar familiares e amigos mortos no fogo cruzado com senhores da guerra, enquanto para outros a morte do ex-presidente americano trouxe lembranças de milhares de famintos que foram salvos.

Deixem-me transportá-los ao começo dos anos 90, quando uma guerra civil irrompeu na Somália, em seguida à queda do ditador Siad Barre. Grassava violenta a batalha entre milícias de clãs rivais pelo controle do país. A combinação de guerra civil, fome após uma safra ruim e a seca prolongada colocou milhares sob risco de morte por inanição.

Mas foi só em dezembro de 1992 que o presidente George H.W. Bush autorizou a mobilização de tropas americanas para a Somália, a fim de assistir a população com mantimentos, em cooperação com as Nações Unidas. Na operação Restore Hope, os militares dos EUA lançaram alimentos para salvar os somalis famintos.

Para muitos americanos, a missão na Somália foi um ato de caridade, a chance de alimentar o povo à beira de morrer de fome. A missão foi igualmente percebida como um mecanismo para proteger os cidadãos normais das milícias que saqueavam tudo o que viam e matavam desenfreadamente. A ONU estima em 300 mil o total das vítimas.

Então, em outubro de 1993, forças especiais dos EUA lançaram um ataque-surpresa à capital, Mogadíscio, com o fim de capturar o poderoso senhor da guerra general Mohamed Farah Aidid. A missão falhou, devido à resistência ferrenha das milícias contra os bem equipados americanos. Dezoito deles foram mortos, outros 80 ficaram feridos.

As imagens dos corpos dos soldados sendo arrastados pelas ruas da capital somali, enquanto se entoavam slogans antiamericanos correu mundo e indignou muita gente. Foi uma falha de cálculo político que assombraria Bush ainda por muito tempo.

A missão fracassada na Somália mudou a política dos Estados Unidos na África para sempre. Dois helicópteros Black Hawk derrubados e 18 soldados mortos reduziram muito o ego de Bush e a disposição de interferir em outras crises no continente. Seis meses mais tarde, os EUA retiravam suas forças da Somália.

Os eventos da época alteraram profundamente o modo de os americanos abordarem a África. Não é de espantar que ninguém tenha falado do assunto desde a morte de Bush. Por causa desse fiasco, porém, seu sucessor, Bill Clinton, assistiu passivamente ao genocídio perpetrado em Ruanda pouco depois, custando mais de 1 milhão de vidas.

As lembranças dos soldados mortos sendo arrastados pelas ruas de Mogadíscio ainda estavam bem frescas, como admitiu Clinton durante uma breve viagem a Ruanda, em março de 1998. Sob o democrata, Washington concentrou-se mais em apoiar o continente em questões de saúde do que com resolução de conflito, sobretudo nos focos de crise.

Após décadas em que, em geral, os EUA deixaram os somalis tomarem conta de seus próprios assuntos – mesmo sob a presidência do filho de Bush, George W. Bush –, agora a administração Trump se propôs a apoiar a Somália em operações antiterrorismo.

Atualmente, cerca de 500 militares estão encarregados de combater os jihadistas do grupo Al-Shabaab. Portanto, George H.W. Bush pode repousar em paz, enquanto o atual presidente americano, um homem que ele abominava, toma conta de seu trabalho inacabado na Somália, combatendo militantes.

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