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Freixo: "A era bolsonarista não depende de Bolsonaro"

28 de outubro de 2022

Candidato derrotado na disputa pelo governo do Rio de Janeiro avalia que há uma consolidação do bolsonarismo em curso. Para o deputado, a esquerda precisa dialogar com os evangélicos.

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Marcelo Freixo
"É muito difícil pensar em uma figura para substituir o Lula", diz Marcelo Freixo sobre o futuro da esquerdaFoto: Marcelo Freixo/Divulgação

Pela primeira vez desde 2006, Marcelo Freixo ficará sem mandato. O deputado federal amargou uma derrota no primeiro turno para o governador reeleito do Rio de Janeiro, Claudio Castro (PL), candidato apoiado pelo presidente Jair Bolsonaro.

Antes da eleição, Freixo migrou do PSOL para o PSB, a fim de construir um arco de alianças com o PT e outros partidos para governar o Rio. Para dialogar com o eleitorado evangélico, o parlamentar mudou sua posição sobre a legalização das drogas.

"Eu fui criado e vivi na periferia em um lugar muito violento. Tive muitos amigos presos e mortos pelo crime e pela violência do Estado. Então, eu sempre tive uma relação muito delicada com esse debate das drogas", afirma.

Em entrevista à DW, Freixo defende uma mudança de compreensão na esquerda sobre as transformações da sociedade brasileira nas últimas décadas.

"Em 2030, teremos uma sociedade brasileira hegemonicamente evangélica. Já temos no Rio de Janeiro", diz. "Eu defendi muito que o Lula fizesse essa carta aos evangélicos. A gente precisa chamá-los para um debate de sociedade e desenvolvimento. É fundamental."

O candidato derrotado no Rio fala com orgulho do enfrentamento ao bolsonarismo em seu berço político. "O estado do Rio é um lugar onde diversos territórios são dominados por outros grupos que não a Constituição de 1988", comenta.

"Não é à toa que nasce aqui o bolsonarismo, que nasce aqui uma versão violenta de um poder autoritário", analisa o parlamentar e historiador, que se projetou nacionalmente ao presidir a CPI das Milícias, em 2008. "Crime, política e território são o establishment do Rio."

Freixo avalia que a força do bolsonarismo nesta eleição surpreendeu e que há uma consolidação em curso.

"O bolsonarismo se mostrou muito mais forte do que a gente imaginava", constata. "Na verdade, existe uma era bolsonarista que, na minha opinião, está começando e teve em 2018 um ensaio. A era bolsonarista não depende do Bolsonaro."

DW: Embora o governador Claudio Castro fosse favorito na disputa pelo governo do Rio, a vitória no primeiro turno surpreendeu. Como você e sua equipe receberam o resultado?

Marcelo Freixo: O nosso sentimento é que o Rio perdeu uma grande oportunidade. Não por mim, mas pela possibilidade de ter uma outra governança, de tirar o Rio de Janeiro de um ciclo de governadores presos, que se arrasta há muitos governos. Pela primeira vez na história do Rio, a gente conseguiu fazer uma aliança muito ampla, de centro-esquerda, mas com uma capilaridade muito grande no conjunto da sociedade. Não foram só oito partidos no primeiro turno, o que já seria inédito. A gente conseguiu também setores da sociedade civil, que vêm de lideranças da favela ao Armínio Fraga, passando por profissionais da Fiocruz, pelas universidades.

Era uma eleição que colocava ao Rio de Janeiro uma outra possibilidade de governança, mas nós enfrentamos uma máquina. Diferente de uma eleição ao Senado, a eleição do governo é uma eleição contra a máquina, uma estrutura de máquina. Havia, por exemplo, 20 mil pessoas segurando bandeira nas ruas para o governador, cada pessoa recebendo R$ 50 por dia. Isso dá R$ 1 milhão de reais por dia gastos só com pessoas segurando a bandeira. Só para dar um exemplo do que significa enfrentar uma máquina. Você tinha as prefeituras, você tinha um volume de campanha como nunca se viu antes. O Eduardo Paes me falou: "Eu já fui candidato junto com o Cabral, com o Pezão, e nunca vi uma máquina ser usada como essa que foi usada pelo Cláudio Castro."

Qual foi o peso do bolsonarismo no resultado?

O bolsonarismo se mostrou muito mais forte do que a gente imaginava. Está aí a eleição presidencial, colocada em uma situação muito delicada para o próprio presidente Lula. A eleição não está definida. Na verdade, existe uma era bolsonarista que, na minha opinião, está começando e teve em 2018 um ensaio. A era bolsonarista não depende do Bolsonaro.

Nós enfrentamos a era bolsonarista no seu berço, enfrentamos uma máquina, e mesmo assim a gente conseguiu chegar a [quase] 28% dos votos, foram 2,3 milhões de votos, a maior votação que a esquerda já teve na história do Rio de Janeiro.

A nossa votação foi muito alta, o problema é que o bolsonarismo polariza no primeiro turno a eleição, e isso muda o perfil do impacto eleitoral. Pode ser que isso perdure por um bom tempo. É muito curioso: se pegar os meus [quase] 28% com a votação do Rodrigo Neves, que teve 8%, dá 35%, 36%, que é a mesma votação do [Fernando] Haddad e a mesma votação do [Alexandre] Kalil [candidatos ao governo de São Paulo e Minas Gerais, respectivamente]. Em Minas, não teve segundo turno. Em São Paulo, teve, porque houve um terceiro colocado, o governador do estado, que nunca na história ficou fora de um segundo turno. É um movimento nacional curioso. No Sudeste, o nosso campo tem 35%. O bolsonarismo foi e é muito forte no Sudeste. Este é o desafio que se faz para a democracia daqui para frente.

Segundo o Datafolha, 79% dos brasileiros apoiam a democracia. É o maior patamar da série histórica do instituto, iniciada em 1989. Como interpretar esse dado?

Muita gente do nosso campo está comemorando isso. Por que o Lula não tem 79% dos votos? Uma parcela está dando entrevista dizendo que defende a democracia, e vota no Bolsonaro. Uma parcela significativa dos que estão dizendo que a democracia é importante vota no Bolsonaro. A gente precisa entender o significado dessa ideia de democracia. É ótimo ouvir que só 11% defendem a ditadura, embora seja assustador imaginar que, depois de tudo que nós vivemos na história do Brasil, ainda temos 11% da sociedade dizendo que defende a ditadura. Mas, qual é a democracia defendida pelos 79%?

O que está acontecendo hoje com o Brasil é uma disputa de um modelo de sociedade também. Nisso, o Rio traz uma peculiaridade: o estado do Rio é um lugar onde diversos territórios são dominados por outros grupos que não a Constituição de 1988. As regras da sociedade valem por grupos criminosos, seja a milícia, seja o tráfico. Segundo uma pesquisa recente da UFF, a milícia avançou 384% nos territórios do estado do Rio de Janeiro nos últimos 16 anos. Essa territorialização do crime e de poderes paralelos é muito singular do Rio de Janeiro.

Não é à toa que nasce aqui o bolsonarismo, que nasce aqui uma versão violenta de um poder autoritário. Não é à toa que nasce aqui uma extrema direita com um projeto nacional que tem a ver com força, arma, medo, tirania. Isso tem a ver com a vida em diversos territórios do Rio de Janeiro. Crime, política e território são o establishment do Rio. 

Como você avalia a estratégia do movimento ao centro que começou com sua ida para o PSB?

Essa pergunta é ótima, porque qualquer movimento que eu tenha feito não foi eleitoral, mas um movimento político de coerência. Eu sempre fui um parlamentar de diálogo. Aliás, sempre fui uma pessoa de diálogo, antes de ser parlamentar. Meu trabalho como educador, meu trabalho como mediador de conflito, sempre foi um trabalho de diálogo. As principais leis que eu apoiei como deputado estadual tiveram apoio de setores da direita liberal.

Vou dar um exemplo: o fim da revista vexatória para familiares de presos. No Rio de Janeiro, essas mulheres de 70, 80 anos, mães e avós de presos, ficavam nuas, tinham que agachar três vezes. Eu fiz uma lei importante que colocou scanner nas prisões, aumentou a segurança dos presídios e tirou a revista vexatória dessas mulheres que não cometeram crime nenhum para serem tratadas assim. Essa lei fundamental na perspectiva dos direitos humanos era minha e do líder do PMDB, Jorge Picciani.

Eu sempre fui uma pessoa que teve diálogo de construção ampla, senão eu não teria presidido a CPI das Milícias, que foi um sucesso, colocou 240 criminosos na cadeia e mudou a opinião pública sobre milícias. Muito do que conquistei na minha vida como parlamentar foi por ser uma pessoa de diálogo. Eu participei do Pacote Anticrime no governo Bolsonaro e consegui derrotar o Sergio Moro. Parte da esquerda votou contra o pacote, mas nós derrotamos o Moro. Para mim, ali tinha sido uma lição grande de que a gente tinha que ampliar.

Seu posicionamento contrário à legalização das drogas causou incômodo na esquerda. Por que você mudou de posição?

Eu fui criado e vivi na periferia em um lugar muito violento. Tive muitos amigos presos e mortos pelo crime e pela violência do Estado. Então, eu sempre tive uma relação muito delicada com esse debate das drogas. Até os 40 anos, eu vivi no Fonseca, em Niterói, um lugar muito diferente. Hoje, se você não discutir com a sociedade evangélica determinados padrões de democracia, você não discute com ninguém da sociedade.

Nós não temos mais a década de 1980 com a teologia da libertação, com o boom sindical e com as universidades, que foi o berço do PT. Nós temos uma outra sociedade hoje. Em 2030, teremos uma sociedade brasileira hegemonicamente evangélica. Já temos no Rio de Janeiro. Não é possível que a gente não consiga sentar para debater com os evangélicos um modelo de democracia e sociedade. Eu defendi muito que o Lula fizesse essa carta aos evangélicos. A gente precisa chamá-los para um debate de sociedade e desenvolvimento. É fundamental.

O ex-presidente e candidato Luiz Inácio Lula da Silva tem 77 anos e já afirmou que não deseja concorrer à reeleição caso vença no domingo. Quadros como você, Fernando Haddad e Guilherme Boulos têm alcançado maior projeção. Porém, você acredita haver uma crise de renovação na esquerda?

Nós temos grandes quadros, mas é muito difícil pensar em uma figura para substituir o Lula. Ele não é uma liderança, ele é a maior liderança política do campo democrático da América Latina. Trata-se de uma pessoa forjada nos anos 1980, que vence uma ditadura, faz dois governos extraordinários, constrói o maior partido da América do Sul. Estamos falando de uma liderança capaz de enfrentar essa extrema direita. Não é qualquer coisa.

A sucessão do Lula, a passagem para uma esquerda sem Lula será conduzida pelo Lula, não sem ele. Nós temos grandes quadros no Brasil hoje, a própria eleição mostrou isso. Não é só um resultado eleitoral. Agora, isso vai ter que ser feito coletivamente. Se nós sairmos em uma busca de quem é o substituto do Lula, isso é muito ruim. Eu acho que a gente precisa entender qual é o projeto de país que queremos e, com o Lula, fazer esse processo de transição. Não teremos mais o Lula como candidato, mas sua liderança política ainda estará acontecendo.