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ConflitosMoçambique

Extremistas usam estupro como arma de guerra em Moçambique

António Cascais
15 de julho de 2024

Sequestros, violência sexual e casamentos forçados são cada vez mais frequentes em Cabo Delgado, no norte do país. Crianças são as grandes vítimas da luta entre islamistas e tropas nacionais, que já entra no oitavo ano.

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Homens, mulheres e crianças carregando grandes trouxas na cabeça
Mais de 700 mil habitantes de Cabo Delgado já foram desalojados desde 2017Foto: Alfredo Zuniga/AFP

"Aqui nesta região muitas garotas foram raptadas e obrigadas a se casar com terroristas", conta Telma, natural do distrito de Chiúre, província de Cabo Delgado, no norte de Moçambique. Lá trava-se desde outubro de 2017 uma guerra violenta entre um grupo terrorista associado ao "Estado Islâmico" (EI) e as forças de segurança nacionais e seus aliados.

A jovem de 17 anos prossegue: "Na nossa vizinhança mora uma moça que conseguiu escapar dos terroristas, depois de três anos de cativeiro, e voltar para a família. A maioria não volta nunca mais. Os jihadistas também sequestram meninas pequenas, elas crescem lá com eles até a maturidade sexual. Aí são forçadas ao sexo e a ter filhos."

Crianças são vítimas de terror islâmico em Moçambique

Esse é apenas um entre centenas de testemunhos recolhidos no norte moçambicano e analisados por diversas organizações humanitárias. O resultado dessa pesquisa de campo foi compilado num relatório sobre casamentos infantis forçados em Cabo Delgado, recém-publicado pela ONG Save The Children Moçambique.

"O problema do casamento forçado de menores de idade já existia antes da guerra, mas por muito tempo era tabu, por motivos de cunho cultural e social", explica Paula Sengo Timane, uma das autoras do estudo. "Desde o começo do terror, porém, o problema se agravou drasticamente. Precisamos fazer algo contra."

O relatório registra um aumento de 10% dos casamentos infantis desde a escalada do conflito em Cabo Delgado, e ela teme que o número vá continuar crescendo. A guerra que grassa em grande parte da província impede que as crianças das áreas mais disputadas recebam a proteção e apoio necessários.

Grupo de jovens africanos sentados à sombra de uma árvore
Em sua pesquisa de campo, Paula Sengo Timane (dir. com laptop) recolheu relatos consternadoresFoto: Save the Chidren

Casamentos forçados como proteção contra rapto e estupro

A especialista em proteção infantil apela por um fim imediato do conflito e por recursos adicionais, voltados aos cuidados e assistência dos menores. Em distritos assolados pelos extremistas islâmicos, como Macomia, Palma ou Mocímboa da Praia, "não é impossível" ONGs como a Save the Children manterem sua atividade, mas "é muito difícil e um desafio".

Enquanto a situação de segurança permanece precária, muitas vezes as organizações não têm acesso às áreas contestadas nem, portanto, aos indivíduos vulneráveis, ficando impraticável ajudá-los.

"No decorrer do nosso trabalho de campo, nós constatamos que os jihadistas empregam sistematicamente sequestros, estupros e casamentos forçados como instrumentos de guerra", relata Timane. Sua meta é disseminar "medo e terror" entre a população.

"Desse modo eles querem demonstrar seu poder sobre as famílias e também ganhar terreno psicologicamente. Esse é um componente importante das práticas de combate desses grupos, também em outras regiões do mundo."

Há ainda um outro componente resultante da atual conjuntura social e sociocultural no local de guerra: "A situação econômica e social é catastrófica. Nesse contexto, estão também documentados casos isolados de pais que, em obediência antecipada, praticamente ofereceram as filhas menores para se casarem com os terroristas", revela a autora do relatório, com base em relatos locais.

"Geralmente as famílias visam o dote, do qual, em sua miséria, dependem para alimentar o resto da família. Sobretudo porque nos últimos anos a guerra reduziu a maior parte das rendas na região de conflito." Ao mesmo tempo, porém, há um aspecto de segurança, pois "alguns pais preferem entregar as filhas a um homem que as proteja de eventuais estupros e raptos por outros terroristas".

Mulher e crianças africanas cozinhando ao ar livre
Apenas desde o fim de 2023, 189 mil tiveram que deixar suas casas em Cabo DelgadoFoto: Igor G. Barbero/MSF

Danos devastadores à educação e psique infantil

A onda de conflitos em Cabo Delgado desde janeiro de 2024 provocou o fechamento de quase todas as escolas das zonas de conflito, impossibilitando a mais de 22,7 mil crianças o acesso à educação.

Paula Sengo Timane frisa que para as jovens casadas a chance de concluir o ensino é bem mais reduzida. Além disso, elas estão mais expostas a violência física e sexual, paralelamente aos riscos de complicações durante a gestação e o parto.

O relatório da Save the Children registra ainda, entre as crianças da região, um medo crescente de ser vítima desse tipo de violência: "Nós documentamos que as crianças das regiões mais disputadas, e em especial as meninas, estão em parte gravemente traumatizadas e necessitam acompanhamento psicológico."

A luta contra o terror jihadista em Cabo Delgado já entra em seu oitavo ano, sem fim à vista. Em fins e junho, a Organização das Nações Unidas relatava que, desde o os últimos meses de 2023, mais de 189 mil cidadãos foram obrigados a abandonar suas casas, no maior processo de expulsão desde o início do conflito. Desde 2017, registram as ONGs, já houve mais de 4 mil mortes, e mais de 700 mil residentes estão desalojados.