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ArteBrasil

Iberê Camargo: o legado de um artista visceral

9 de agosto de 2024

Há 30 anos, morria um dos principais artistas brasileiros do século 20. Autor de mais de 7 mil obras, gaúcho ficou mundialmente conhecido por sua expressão e abstração, mas nunca se filiou a nenhuma corrente.

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Iberê Camargo ao lado de um autorretrato, em 1993
Ao longo da trajetória, Iberê Camargo acumulou premiações e participações em eventos no Brasil e no exteriorFoto: Luiz Eduardo Achutti/Acervo Documental Fundação Iberê

Na noite de 9 de agosto de 1994 morreu em Porto Alegre o pintor, gravurista e professor de arte Iberê Camargo. Ele tinha 79 anos — completaria 80 em novembro — e já era reconhecido como um dos principais nomes da arte brasileira do século 20. 

Dono de um estilo visceral, o artista costumava dizer que, para ele, um quadro "é um gesto, o último gesto". Coerente com isso, diante da tela costumava empreender violentas pinceladas revelando um eterno conflito que, no fundo, era como ele representava o próprio viver.

"A pintura de Iberê está para o debate figuração versus abstração dos anos 1940 e 1950 o que a pintura de Ismael Nery [(1900-1934)] está para o debate sobre modernidade e nacionalidade nos anos 1920 e 1930", compara o crítico de arte e historiador Francisco Alambert, professor na Universidade de São Paulo (USP). 

Ele destaca que, "o sentimento de estranhamento do mundo, o engajamento na angústia de existir ou o poder metafísico do sonho e da religiosidade" levam Iberê "a tomar distância dos debates que lhe eram contemporâneos, sem deles entretanto prescindir". 

"Iberê se distanciou do otimismo construtivista e fez quase solitariamente uma obra de matéria acumulada, raspas, cores impuras, imagens descalcadas ou desfalecidas, sombrias, sem apelo a utopias coletivas mas, ainda assim, empáticas em sua violência solitária", analisa o crítico.

Nascido em Restinga Seca, no interior do Rio Grande do Sul, Iberê começou seu aprendizado em pintura quando tinha de 12 para 13 anos, na Escola de Artes e Ofícios de Santa Maria. Nove anos depois, em 1936, mudou-se para Porto Alegre. 

Em 1942, já casado com Maria Coussirat Camargo (1915-2014), mudou-se para o Rio de Janeiro. Gradualmente, "dona Maria", como era conhecida, acabou se tornando a grande organizadora da vida artística do marido, encarregando-se de contratos, redação de cartas e gestão do ateliê.

Consagração

Premiado com uma viagem ao exterior, viveu na Europa de 1948 a 1950, onde conheceu museus e estudou gravura e pintura com grandes nomes, como o italiano Giorgio de Chirico (1888-1978) e o francês André Lhote (1885-1962). 

A década seguinte foi de consagração. Iberê retornou ao Brasil e passou a acumular premiações e participações em eventos importantes, como a Bienal de São Paulo, a Bienal de Veneza, a Bienal Hispano-Americana de Madri e a Bienal de Gravuras do Japão. 

A partir de então ele passaria a exercer influência sobre novas gerações. Mas, pessoalmente, nunca se filiou a nenhuma escola, corrente ou movimento. 

"Ele expandiu a pintura brasileira por meio de sua expressão e abstração. Sua trajetória foi existencialista, Iberê foi um artista que viveu sua relação com a arte de forma intensa, de modo que sua arte estava associada à vida", destaca o empresário e artista plástico Marcos Amaro, fundador do Fama Museu, um dos maiores museus de arte da América Latina. 

"É um artista da pulsão, da vitalidade, da vida e morte. Que revela isso tudo na sua obra, de forma visceral e contundente", completa Amaro.

A professora de história da arte e arquiteta Marcia Iabutti define a obra de Iberê como algo que "transcende os modismos e tendências da arte moderna e contemporânea por ser autêntica, visceral, que sempre buscou uma visão particular e pessoal da arte e da maneira de representar o mundo".

"Mesmo apresentando um estilo expressionista, ele nunca procurou se adequar a um movimento artístico específico, buscando sempre a sua própria verdade baseado nas suas lembranças, emoções e vivências", pontua.

Iabutti ressalta que se pode buscar "um certo paralelo estilístico" entre o trabalho do gaúcho e o do pintor irlandês Francis Bacon (1909-1992), "principalmente quanto às características pictóricas de pinceladas soltas e intensas e uso de tons frios e sombrios". Mas a obra de Iberê, segundo ela, "possui características inconfundíveis, principalmente quanto aos temas abordados, notadamente a angústia, a solidão e o desamparo dos seres humanos". 

Alerta sobre o Guaíba

De acordo com estimativa da Fundação Iberê, o artista produziu mais de 7 mil obras ao longo da carreira, entre pinturas, gravuras, guaches e desenhos. No ano seguinte à morte de Iberê, sua viúva fundou a instituição, para preservar e divulgar o acervo do artista. 

Na reserva técnica, a Fundação Iberê conserva atualmente mais de 3,7 mil desenhos e guaches, 1,6 mil gravuras e 217 pinturas. "E, como regra, sempre temos um dos nossos andares expositivos dedicado a isto [mostras de trabalhos de Iberê]", afirma o empresário cultural Emilio Kalil, diretor-superintendente da entidade. 

"Muito além de só expor, o nosso departamento de arte-educação está permanentemente dedicado a projetos em escolas públicas e privados, visando a dar conhecimento deste legado", ressalta. 

Um exemplo destacado por Kalil é a próxima mostra dedicada ao trabalho do artista, que será inaugurada em 14 de setembro e terá "um Iberê preocupado com o meio ambiente e a preservação urbanística das cidades". 

"Esta exposição, programada mesmo antes das trágicas enchentes [que assolaram o Sul do Brasil neste ano], se chama 'Iberê e o Guaíba'. Ele já apontava esta falta de cuidado [urbanístico] em textos visionários, como em 1993, quando disse que 'urge tombar o Guaíba'", comenta o diretor-superintendente. O corpo hídrico é o mais importante da região de Porto Alegre e atingiu seu nível histórico em maio, superando os cinco metros, transbordando e algando bairros inteiros da capital gaúcha, deixando centenas de milhares de pessoas fora de casa. 

"O grande legado de Iberê Camargo, além de sua própria obra de milhares de pinturas, desenhos e gravuras expostos em diversos museus e na fundação que leva seu nome no Rio Grande do Sul, é o foco que ele sempre teve na educação e na transmissão de conhecimento sobre arte para as novas gerações, que ele sempre efetuou durante toda sua vida e que continua sendo mantida em sua fundação", ressalta ainda Iabutti.