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Guerra na Ucrânia testa relação Alemanha-EUA

3 de fevereiro de 2023

Tem sido árduo arrancar um "sim" dos aliados ocidentais no apoio militar a Kiev contra a Rússia. Desafio que torna ainda mais complexa a historicamente tensa relação Washington-Berlim.

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Joe Biden e Olaf Scholz
Joe Biden e Olaf Scholz: um novo capítulo nas relações transatlânticas. Mas quanto durará?Foto: Michael Kappeler/dpa/picture alliance

É como no filme Feitiço do tempo, em que um mesmo dia se repete sem cessar: a sofrida decisão de aliados ocidentais de enviar à Ucrânia seus tanques de combate mais potentes é só a mais nova rodada de um padrão iniciado com a invasão do país pela Rússia, em 24 de fevereiro de 2022.

A rotina do apoio militar começa com um decidido "não", seja a armamentos pesados, defesa aérea avançada ou veículos blindados de ponta; depois abranda-se num "sim", mas só após semanas de negociações, desculpas técnicas e esforços dos parceiros em mostrar unidade, enquanto os que querem se mover mais rápido pressionam os mais relutantes.

Para os Estados Unidos e a Alemanha – os maiores membros da aliança pró-Kiev, sobretudo em termos de peso econômico, capacidade industrial e poder de compra – a questão de como e quanto ajudar o país sob ataque russo a se defender tem influenciado a relação bilateral de maneiras novas. Por outro lado, trata-se apenas de um fragmento de um quadro global muito mais complexo.

Do bullying à paciência

Após os anos de intimidação de Donald Trump, o presidente Joe Biden adotou uma abordagem do tipo "é mais fácil pegar moscas com mel do que com vinagre": em vez da estratégia da culpa, seu governo tem mostrado paciência, frequentemente louvando os alemães por suas contribuições.

Trata-se também de uma forma de conferir a Berlim a "cobertura" diplomática de que precisa para tomar decisões politicamente desconfortáveis, comenta à DW Thomas Kleine-Brockhoff, diretor do German Marshall Fund em Berlim.

No contexto recente do compromisso de fornecer 14 tanques de guerra Leopard 2, Biden elogiou publicamente o chanceler federal alemão, Olaf Scholz, por seu "resoluto engajamento" pela Ucrânia, dando ao país crédito por haver "tomado iniciativa". A portas fechadas, no entanto, a questão assumiu um tom bem diferente.

"O chanceler federal alemão pressionou os americanos, dizendo: 'Não vou fazer antes que vocês façam.' Isso causou certa perplexidade por parte de Washington", em especial por os EUA virem evitando pressionar a Alemanha, aponta Kleine-Brockhoff.

Apesar de Biden negar que a pressão de Scholz o tivesse forçado a mudar sua posição quanto ao envio dos tanques Abrams americanos, as semanas de negociações foram um lembrete sobre a necessidade alemã de que seu maior aliado mostre as cartas antes de colocar suas próprias na mesa.

Desse modo, os tomadores de decisões de Washington deram-se conta de "até que ponto, realmente, os alemães querem ser conduzidos, enão conduzir", afirma Kleine-Brockhoff.

Velhas tensões cedem, mas novas despontam

Para os críticos de Scholz, o fato contradiz seu esfuziante discurso no Bundestag, o parlamento alemão, apenas dias após o início da ofensiva russa contra a Ucrânia. Na ocasião, o chefe de governo declarou uma "zeitenwende", um ponto de inflexão epocal, que exigiria do país incremento considerável das despesas militares e uma política de segurança mais robusta.

"Foi preciso uma guerra para os alemães mudarem de curso" em relação a "agentes irritantes" de longa data na relação teuto-americana, descreve o especialista em política externa Kleine-Brockhoff.

Para os EUA, esses agentes eram a resistência de Berlim em assumir gastos militares mais elevados – o país estava abaixo dos 2% do PIB acordados com a Organização do Tratado do Atlântico Norte (Otan) – e os projetos de gasodutos Nord Stream com a Rússia. Por sua vez, irritava a Alemanha o fato de o aliado ameaçar com a imposição de sanções, em resposta.

Desde então, esses pontos de atrito se tornaram obsoletos, assim como o debate interno na Alemanha quanto a sua participação no compartilhamento nuclear da Otan, política que envolve o estacionamento de armas nucleares em território alemão e seu transporte por aeronaves militares do país.

Tanque de guerra Leopard 2
Concessão de 14 tanques Leopard 2 à Ucrânia exigiu semanas de discussões a portas fechadasFoto: Martin Meissner/AP Photo/picture alliance

O impasse da instabilidade política dos EUA

O contraste entre a tendência de Biden de colocar os interesses americanos em primeiro lugar – como exemplificado pela abundantemente subvencionada lei IRA, para redução da inflação nacional – e sua visão de uma coalizão de democracias confrontando autocracias, põe em evidência um complexo número de equilibrismo que se expressa na relação teuto-americana.

Enquanto a Alemanha encara a Ucrânia como uma questão de segurança regional, para os EUA a guerra desencadeada por Moscou é apenas uma peça num tortuoso jogo de xadrez geopolítico. Pois uma Rússia debilitada seria uma bênção para os interesses americanos em outras partes do mundo – interesses que a Alemanha simplesmente não partilha.

O país europeu, "com poucas exceções, sequer possui o poder de fogo mental ou intelectual para pensar nesses termos", sentencia James Davis, diretor do Instituto de Ciência Política da Universidade de Sankt Gallen, na Suíça. "Ninguém foi treinado para pensar assim."

Os EUA necessitam que Berlim assuma uma parcela maior da carga da defesa da Europa, a fim de poder dedicar mais recursos para confrontar a China na região do Pacífico. Por sua vez, os alemães precisam saber que podem contar com o respaldo americano na Europa.

Mas Davis questiona: "Você apostaria nos EUA, neste momento? É uma questão válida." Saindo do desastre dos quatro anos de Trump, aliados dos EUA como a Alemanha encaram interesse bipartidário no Pacífico e a expectativa de endurecer o tom com a China. Um Partido Republicano imprevisível controla o Congresso americano, o qual ameaça com um calote cataclísmico e serve de lembrete de que o relógio está correndo para a Casa Branca sob Biden.

"Como quem, aos 30 anos, não sai da casa dos pais"

Ainda assim, Davis considera surpreendente que – apesar das sérias alterações no relacionamento Berlim-Washington desde os atentados de 11 de setembro de 2001 – a relutância alemã em assumir a liderança em questões de política externa permaneça a mesma.

Berlim condenou o militarismo americano no Iraque, as torturas e abusos contra combatentes capturados, assim como uma campanha de espionagem em massa – de que o país também foi alvo na época. Isso levou os alemães a preferirem se manter distantes dos EUA e mais passivos no cenário internacional, analisa o politólogo.

Agora a relação é muito mais calorosa, mas a reticência permanece: "Ainda há essa frustração, essa espécie de tensão na relação transatlântica, mas desta vez é porque os alemães dizem 'só se for com vocês'."

O Partido Social-Democrata (SPD), que lidera a coalizão governamental tripartidária da Alemanha, defendeu frequentemente uma abordagem cooperativa para com a Rússia, a maior nação da Europa e importante parceira comercial até a invasão da Ucrânia. Desde então, muitos social-democratas mudaram seu ponto de vista, mas os críticos do partido permanecem céticos.

O eleitorado do leste do país – que vive na região da extinta República Democrática Alemã (RDA), sob governo comunista e aliada da União Soviética – se sente culturalmente mais próximo da Rússia do que seus compatriotas do oeste, e tem pouco desejo de uma confrontação com Moscou. O oeste alemão, por sua vez, pode ser mais pró-americano, mas esse sentimento é acompanhado pela expectativa, herança da Guerra Fria, de que Washington assuma a dianteira.

"Vocês [alemães] tiveram bastante tempo para evoluir dentro do novo papel", critica Davis, rejeitando a validade do "refrão" alemão sobre seu passado nazista e consequente aversão ao poder militar. "Isso me lembra aquela gente que, aos 30 anos, não quer sair da casa dos pais."