Freud, a religião e a memória cultural
4 de abril de 2006As teses de Jan Assmann, professor de Egiptologia da Universidade de Heidelberg e de Ciência da Cultura da Universidade de Constança, já levantaram polêmicas consideráveis no meio acadêmico alemão. Em Die Mosaische Unterscheidung oder der Preis des Monotheismus (A distinção de Moisés ou o preço do monoteísmo), Assmann dialoga com Moisés e o monoteísmo – o último livro concluído por Freud e escrito entre 1934 e 1938.
Para Assmann, os conceitos de "verdadeiro" e "falso" introduzidos pelo monoteísmo trouxeram a violência para o discurso religioso, pois a partir deste momento estabeleceu-se o antagonismo entre uma ideologia "certa" em oposição a outras "erradas".
O teórico alemão lembra que imagens violentas estão presentes, a partir daí, nos livros sagrados de cristãos, judeus, muçulmanos e de outras religiões monoteístas. Afastar essas "verdades absolutas" é, para ele, a única possibilidade de se aproximar verdadeiramente do Outro.
Memória involuntária e memória voluntária
Um dos pilares das teorias desenvolvidas pelo teórico e por sua mulher, a professora de Literatura Inglesa e Ciência da Cultura Aleida Assmann, está no conceito de "memória cultural". Trata-se aqui não apenas de uma memória "voluntária", mas de uma memória coletiva "involuntária", nos subterrâneos da qual há tecidos que, após longo período de latência, podem voltar à superfície.
A memória cultural descrita por Assmann alimenta-se da tradição e da comunicação, englobando "rupturas, conflitos, inovações, restaurações e revoluções". Os rituais pertencem ao campo da memória cultural, da mesma forma que símbolos, ícones, representações como memoriais ou templos. Formas que "ultrapassam o horizonte da memória das coisas", ao costurarem os elos entre tempo, lembrança e identidade.
Oposição a Derrida
Justamente esta "memória cultural", afirma Assmann, foi ignorada por Freud, que "localiza as transferências inconscientes não na cultura”, mas num programa herdado geneticamente. Existe uma dimensão inconsciente de transferências coletivas, mas elas pertencem ao campo da cultura e não ao campo biológico, sustenta Assmann.
Em entrevista à DW-WORLD, o teórico alemão fala sobre a postura antagônica de Freud em relação à religião, discute a relação da Alemanha frente à "impossibilidade de esquecer" seu passado traumático, explica por que se opõe a Derrida, quando este afirma que a psicanálise se tornou uma teoria "do arquivo" e não somente uma teoria da memória, e alerta: "A consciência pós-moderna é radicalmente relativista. A globalização assume o lugar dos princípios universalistas".
DW-WORLD: Moisés e o monoteísmo, de Sigmund Freud, permaneceu por décadas esquecido. Há menos de 20 anos, houve o que o senhor mesmo definiu como um "retorno singular" deste que foi o último livro concluído por Freud. A que se deveu este resgate?
Assmann: A mudança ocorreu em torno de 1990, sendo que a ruptura decisiva aconteceu com o livro Freud’s Moses (1991), de Yosef Haym Yerushalmi [historiador israelense]. O interesse redespertado pelo livro de Freud está ligado à atualidade de sua temática, que gira em torno dos conceitos "monoteísmo" e "memória".
O monoteísmo é o princípio normativo da cultura ocidental e a memória a dinâmica do inconsciente no processo da evolução cultural, levada de forma macroscópica por Freud para o coletivo, para a psicologia de massas. Somente em 1990 é que se começou a entender que estes são, na realidade, os temas do livro.
Walter Benjamin, em suas "teses histórico-filosóficas", fala que o passado só começa a se tornar "legível" com o passar do tempo, de repente, a partir de algum contexto determinado. Assim, o livro de Freud só adentrou a fase de legibilidade 50 anos após sua publicação. O tema "memória", além do mais, esteve inserido em uma conjuntura singular na Alemanha desde meados dos anos 80 e no Leste Europeu desde a derrocada do socialismo em 1989, ou seja, desde o "despertar" das várias memórias nacionais reprimidas até aquele momento.
Freud via no monoteísmo um "progresso do espírito humano" e descrevia a religião, ao mesmo tempo, como uma neurose. O senhor pode comentar este ponto de vista consideravelmente paradoxo?
Aqui há realmente uma contradição, em relação à qual o próprio Freud, como parece, não tinha muita clareza. A questão colocada por ele ao examinar a história da origem do monoteísmo era: como esta religião pôde se afirmar com tal força de persuasão avassaladora? Esta história bem-sucedida ele explica com o retorno do reprimido.
Não porque a religião seja "verdadeira" ou porque haja um Deus que tenha se revelado aos judeus, e muito menos porque o monoteísmo reclame um "progresso do espírito humano", mas pura e simplesmente em função de sua verdade "histórica". O monoteísmo vai ao encontro dos princípios básicos edipianos da alma humana e, por isso, encontra tamanha ressonância. Assim se explica porque ele se impôs. O reprimido retorna, porém, nos sintomas neuróticos, aqui em forma de uma religião que anula a força das leis do pensamento lógico, como Freud não cansava de acentuar.
Continue lendo: Freud e as ilusões da religião; os conceitos de "verdadeiro" e "falso" introduzidos pelo monoteísmo; os elementos patriarcais nas grandes religiões monoteístas; o conceito de "arquivo" em Derrida.
Para Freud, a religião constrói ilusões, desencadeadas por experiências históricas reprimidas. Como o senhor vê, neste contexto, o retorno da religião no mundo hoje? Qual é o papel exercido pela religião na atualidade?
É realmente a "religião", o que hoje está voltando? Ou trata-se, pelo menos no que diz respeito aos vários fundamentalismos, de uma política inflamada pela religião? Aqui há uma dinâmica em funcionamento que certamente tem muito a ver com processos psicológicos: ressentimento, medo da perda de poder e identidade, falta de orientação e a busca de um sentido como reação ao declínio das Igrejas oficiais no Ocidente... e seria interessante saber o que Freud teria a dizer hoje a respeito disso.
A meu ver, as religiões concretas são, com seus dogmas, uma aproximação apenas do ponto de vista histórico e cultural de uma verdade oculta. Elas se impõem através da referência a esta verdade e não por deterem a verdade. O delírio de deter a verdade é a marca registrada do fundamentalismo.
O que, aliás, ocorre principalmente na Europa e nos EUA, mas também retorna ou cresce em outras regiões do mundo, pode ser antes chamado de "religiosidade" do que de "religião", no sentido de que se trata da disposição de se ligar a algo visto como sagrado.
Este lugar do sagrado é ocupado menos pelas Igrejas tradicionais do que pelo passado traumático, aludido por conceitos como "Auschwitz", "Holocausto" e "Shoa". Tanto a consciência coletiva quanto a individual são mantidas acordadas em forma de rituais, memoriais, exposições e livros por um número crescente de artistas, intelectuais, políticos, professores e historiadores, com seus alunos, leitores e visitantes, no que se tornou uma espécie de obrigação sagrada.
Aqui, o desejo de não esquecer encontra-se com a impossibilidade de esquecer. Esta postura religiosa frente a um passado obrigatório, mas traumático, também se dissemina em outras sociedades pós-traumáticas.
Por que o senhor afirma em seu livro A distinção de Moisés ou o preço do monoteísmo que a análise de Freud da "religião monoteísta do pai" e suas conseqüências psico-históricas são uma "provocação sustentável fascinante"?
A caracterização de Freud do monoteísmo como "religião do pai" me parece tão convincente quanto a classificação do cristianismo como uma "religião do filho". Mas também no judaísmo e no islã o elemento patriarcal e avesso à mulher, ou seja, fóbico em relação à mulher, se sobressai. Considero legítimo e produtivo questionar as conseqüências psico-históricas destes princípios religiosos.
Em seu livro, o senhor examina a distinção entre "verdadeiro" e "falso" nas religiões monoteístas, além de citar a linguagem da violência nos livros sagrados dos judeus, cristãos, muçulmanos e outros. O senhor exclui qualquer possibilidade de haver monoteísmo sem violência. Abolir este tipo de "verdades absolutas" é o único caminho para a compreensão do Outro?
Sim. As religiões precisam, a meu ver, reconhecer a condição relativa das verdades por elas intencionadas, mas nunca "possuídas" nitidamente, preto no branco. Considero o conceito teológico da revelação um equívoco. A Torá não foi "entregue" ou "revelada". Se há uma "religião universal", então esta é a religião do reconhecimento mútuo, que dá espaço ao outro na consciência de uma verdade comum, ainda que oculta. Violência religiosa é uma contradictio in adjecto.
Por que o senhor afirma que a consciência pós-moderna, a caminho de uma nova era digitalizada e globalizada, nos leva a acertar contas com os princípios do mundo ocidental?
A consciência pós-moderna é radicalmente relativista. Ela reconhece apenas verdades locais. A globalização se mantém à sombra da internet e da economia. Valores, inclusive os direitos humanos, só têm importância local, ou seja, ocidental. A globalização assume o lugar da universalização.
É aí onde os "princípios de Moisés do nosso mundo ocidental" titubeam. Por isso começamos a pensar como esses princípios, com suas reivindicações de valores universalistas, ainda poderiam ser salvos. Trata-se de garantir um contorno universal a determinados valores indispensáveis ao convívio humano, independente de estes serem originariamente do Ocidente, Oriente, Norte ou Sul. Porque agora nos tornamos convivas em um mundo que se tornou pequeno.
O conceito de "memória cultural" é definido pelo senhor e por Aleida Assmann como a junção da "memória voluntária"com a "memória involuntária". Nos subterrâneos desta última haveria um teor reprimido e latente, que pode vir à tona a qualquer momento. Ou seja, pode-se dizer que vocês partem de Freud para definir o que é "memória cultural", embora apontem esta como um "ponto cego" na teoria freudiana?
Sim, aprendemos com Freud. Não há apenas a "tradição" consciente, mas há também, na transmissão da cultura de geração a geração, uma dinâmica de entrega e repúdio, de sacralização e demonização, de rupturas e reatamentos. Esta só pode ser entendida como uma forma de memória que, com seu jogo de lembrar e esquecer, negar e reprimir, abrange uma dimensão de "transferências" inconscientes. É a mémoire involontaire da memória cultural.
Freud não enxergava isso: ele localizou essas transferências inconsicentes não na cultura, mas em uma memória "filogenética", herdada biologicamente. Disso queremos nos livrar. Há uma dimensão inconsciente de transferências coletivas, mas ela pertence ao campo da cultura e não da natureza ou de um programa genético inato.
Jacques Derrida relaciona o discurso psicanalítico ao que chama de teoria do "arquivo". O senhor se posiciona claramente contra Derrida neste sentido. Poderia explicar por quê?
O que é arquivo? Uma instituição para armazenar um material passível de ser encontrado ou procurado, mas que não é mais utilizado de imediato. Aí estão arquivistas, que administram os acervos. Como se pode, então, falar em "arquivo da circuncisão"? Acho esse exagero de metáfora insuportável. O que se diz com isso? Suponho que Derrida queira dizer a mesma coisa que dizemos com "dimensão inconsciente" da memória cultural, mas por que se deveria chamar isso de "arquivo"?
Há, por outro lado, um uso pertinente do conceito de "arquivo", que é quando se fala em "cânone". O arquivo se difere da biblioteca, da mesma forma como o depósito de periódicos de um museu é algo distinto dos espaços onde se expõe. Acervos de arquivos não se encaixam em categorias normativas ou estéticas, que cabem a obras canonizadas.
Agora, a circuncisão não é exatamente um "arquivo" neste sentido de armazenamento sem compromisso. Ela é um "signo" de enorme compromisso e, por isso, um elemento do cânone, não do arquivo.