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Músicos russos enganados em vídeo de propaganda pró-Putin

Anastassia Boutsko
25 de março de 2022

Estudantes da prestigiada Academia de Música Gnesin são exemplos de como a Rússia fabrica apoio à guerra na Ucrânia. Ex-alunos enviam carta de protesto, dizendo se tratar de uma "mancha" na instituição.

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Maestro e diretor Mikhail Khokhlov com a letra "Z" estampada na blusa, em imagem retirada do vídeo da escola
Maestro e diretor Mikhail Khokhlov com a letra "Z" estampada na blusa, em imagem retirada do vídeo da escolaFoto: Vkontakte/Gnessin Musikschule

No dia 7 de março de 2022, no 12º dia da agressão russa à Ucrânia, jovens músicos da renomada Academia Russa de Música Gnesin, chegaram para um ensaio com a Gnesin Virtuosi, a orquestra de câmara que é o maior símbolo da escola.

O maestro e diretor Mikhail Khokhlov vestia uma blusa preta com um zigue-zague bastante característico, mostrando a letra "Z", que se tornou um símbolo da guerra russa contra a Ucrânia – que no país é chamada de "operação militar especial". Quem não acatar essa definição arrisca pena de até 15 anos de prisão.

Apareceram para o ensaio duas ou três pessoas com câmeras. O maestro disse aos alunos que gravariam um vídeo em apoio aos colegas cujas apresentações no Ocidente foram canceladas em razão de serem cidadãos russos.

Partituras com a Quinta Sinfonia de Beethoven, também chamada de Sinfonia do Destino, foram distribuídas aos músicos.

Uma semana mais tarde, o vídeo de menos de sete minutos apareceu na internet, com os jovens executando a primeira parte da sinfonia, enquanto o maestro conduzia a orquestra com expressão determinada.

O título do vídeo se traduz como "Vítimas MuZicais", com ênfase na letra "Z", em uma clara mensagem de apoio à guerra na Ucrânia.

Alunos desconheciam propósito da gravação

O famoso violinista Roman Mints, formado na Gnesin, disse se tratar de uma grande manipulação. "Os jovens sequer sabiam do propósito da gravação", afirmou à DW.

Quase todos os que são conhecidos no meio musical russo, e que conseguiram desenvolver uma carreira no exterior, passaram pela renomada Academia Gnesin, incluindo os pianistas e compositores Eugeny Kissin e Daniil Trifonov.

Imagem retirada de vídeo mostra a orquestra de câmara Gnesin Virtuosi, o maior símbolo da escola
Imagem retirada de vídeo mostra a orquestra de câmara Gnesin Virtuosi, o maior símbolo da Academia de Música GnesinFoto: Vkontakte/Gnessin Musikschule

Mints considera o que ocorreu na escola como algo significativo. Ele se mudou para o Reino Unido com sua família após o início da invasão. "É, de certo modo, o Estado russo em miniatura, com um líder despótico no topo, o único no comando", afirmou. O sistema todo é repleto de medo, segundo o violinista. "A opinião individual não tem significado; todos são uma peça na engrenagem. As pessoas são somente material humano."

Quem é Mikhail Khokhlov

O maestro, nascido em 1955, dirige a escola há mais de 30 anos – mais tempo do que o presidente russo, Vladimir Putin, está no poder.

Na ocasião do 70º aniversário da instituição, em 2016, Khokhlov enalteceu sua tradição humanista, afirmando que irmãos Gnesin, fundadores da academia, conseguiram se manter independentes mesmo nas piores épocas, cultivando o que ele chamou de "oásis de liberdade".

Elena Gnesin cercada por seus alunos nos anos 1950
Elena Gnesin e seus alunos nos anos 1950Foto: prival

Nos anos 1990, Khokhlov, que é formado na própria academia e se tornou o diretor mais jovem da história da instituição, evitou a desapropriação da escola em uma época em que o então prefeito de Moscou Yury Luzhkov tinha algumas ambições para o belo palácio que a abriga.

"Destruiu o espírito da escola"

Ele pode ter salvado o edifício, mas "destruiu o espírito da escola", afirma Maria R., uma das mais respeitadas professoras de piano da academia. Ela não quis usar seu nome verdadeiro, dizendo ter medo de perder seu emprego.

"Todos têm medo: professores, alunos e pais", afirmou à DW. Ela lembra que, quando era estudante na Gnesin, a escola, os professores e os administradores – os intelectuais da velha escola e alguns aristocratas – conseguiam transmitir as mentiras perpetradas pelo regime soviético sem, no entanto, utilizar muitas palavras. Hoje em dia, as coisas são diferentes, ela diz, e a culpa é de todos.

Alguns pais estão revoltados com o que está acontecendo. "Acho que é desleal e de mau gosto arrastar as crianças para estas orgias fascistas", disse uma das mães em um grupo de discussão de pais no portal da escola.

Imagem congelada do vídeo mostra alunos tocando instrumentos. Ex-alunos criticaram divulgação do vídeo, dizendo ter sido uma "mancha" na reputação da escola
Ex-alunos criticaram divulgação do vídeo, dizendo ter sido uma "mancha" na reputação da escolaFoto: Vkontakte/Gnessin Musikschule

"Minha filha e a maioria das crianças na orquestra não tinham ideia do que o símbolo no peito do maestro significava", escreveu, antes de acrescentar um insulto a Khokhlov por transformar um ensaio em um ato de apoio a "aquele tipo" de vítimas musicais.

A postagem recebeu poucas curtidas e algumas reações. "Algo assim, nos tempos atuais, que são tão difíceis para nosso país! Isso foi escrito por uma fervente apoiadora do [líder opositor preso, Alexei] Navalny."

A mulher, que também não quis se identificar, contou que participa de protestos. Ela disse que sempre leva uma escova de dentes, carregador e bateria portátil para seu celular, para o caso de ser presa.

Ao responder uma pergunta sobre o motivo pelo qual sua filha não sabe o que significa a letra "Z", ela conta que seus filhos são proibidos de assistir televisão, usar Facebook ou Instagram. A rádio Echo Moskvy e a TV Doschd eram fontes de informação, mas acabaram sendo banidas pelo Estado. Ela diz também que sua filha, afinal, está voltada para a educação dela.

Carta de repúdio de ex-alunos

O vídeo atraiu atenção internacional e gerou revolta. Vários ex-alunos da academia assinaram uma carta em protesto: "Nós, ex-alunos da Gnesin de gerações diferentes, condenamos com vigor essa ação e a consideramos uma terrível mancha na história de nossa escola", diz o texto.

"Uma mancha que estraga a reputação de uma das melhores academias de música do mundo e a honra de ex-docentes famosos da Academia Gnesin. Também consideramos inaceitável que estudantes menores de idade, assim como o próprio nome da escola, sejam usados para expressar visões pessoais militarizadas", prossegue a carta, assinada por mais de 200 músicos, incluindo Daniil Trifonov.

No dia 21 de março, o vídeo foi removido do Youtube, mas ainda estava no portal de internet da escola e na rede social russa VKontakte.

Violinista Roman Mints, formado na Academia Gnesin
Violinista Roman Mints, formado na Academia Gnesin, diz que a escola é "o Estado russo em miniatura"Foto: Svetlana Minaeva

Roman Mints, coidealizador da carta, diz que os signatários deixaram de fora, propositalmente, as crianças. "Ao contrário de Khokhlov, nós nos importamos com seus destinos", disse o violinista.

Um dos alunos confirmou ter se tratado de um ensaio de rotina. Os jovens músicos não tinham ideia do que o vídeo realmente se tratava. Ele diz que está informado sobre a guerra, e a acha terrível. Diz que ouviu falar de crianças mortas, da destruição de Kharkiv e Mariupol. Ele também tem amigos e parentes da Ucrânia.

Ao responder uma pergunta sobre se teria tocado caso soubesse de antemão de que forma o vídeo seria utilizado, ele responde afirmativamente. "Acho que sim", argumentando que o ensaio era obrigatório. Ele deseja estudar em um conservatório, onde o diploma da Gnesin será necessário.