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HistóriaBrasil

"Estrutura de repressão da Petrobras foi modelo na ditadura"

Vinicius Pereira
1 de outubro de 2024

Em entrevista, pesquisadora Luci Praun conta como a estatal perseguiu funcionários durante o regime militar e criou departamento de espionagem que cooperava com outras empresas.

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Brasilien Rio de Janeiro | Logo von Petrobras
Foto: Fabio Teixeira/AA/picture alliance

Ponto estratégico ao modelo de desenvolvimento seguido pelos militares durante a ditadura, a Petrobras não foi apenas a ponta de lança da industrialização brasileira no período. A estatal também foi laboratório de um projeto ligado à repressão da classe trabalhadora no país, de acordo com Luci Praun, socióloga e professora da Universidade Federal do Acre (Ufac).

Em Petrobras e petroleiros na ditadura, a autora, que assina a obra com outros seis pesquisadores, afirma que, por meio da Divin (Divisão de Informações da Petrobras), a estatal estruturou um centro de espionagem e repressão, que seria referência a outras empresas no país. Não somente sindicalistas e opositores do regime eram perseguidos na empresa, mas também trabalhadores acusados de serem homossexuais.

"Há esse componente moralizante, conservador da ditadura, articulado com a perseguição a esses trabalhadores. Evidentemente isso também demonstra uma forma de expressão da masculinidade dentro do local do trabalho, com a ideia de que há um determinado perfil que não serve para determinadas atividades dentro da Petrobras", diz.

DW: No livro, os autores afirmam que a ditadura colocou a Petrobras no centro da Doutrina de Segurança Nacional (DSN). Quais foram as implicações disso para a empresa?

Luci Praun: No Brasil e em outros países periféricos, associar desenvolvimento a uma doutrina nacional é a chave para se entender o projeto de ditaduras locais. Por um lado, há uma associação com influência dos EUA, no contexto da Guerra Fria, que, para que se pudesse desenvolver esse projeto localmente, era necessário derrotar a luta da classe trabalhadora.

Uma noção de segurança nacional passa por ter o controle do petróleo e das unidades de produção e refino dessa matéria-prima utilizada para a industrialização, que é parte de uma perspectiva de desenvolvimento nacional. Não à toa, a Petrobras sempre teve nos seus quadros militares. Essa presença aumenta a partir do golpe, mas os militares estão ali presentes fortemente na empresa desde antes.

O golpe tentou alterar a correlação de forças no país, ou seja, havia o conjunto da classe trabalhadora se organizando, não uma ameaça de revolução, mas um avanço por direitos, com greves. E, entre os petroleiros, não era diferente. O golpe vem no sentido de estancar esse processo.

Todo o processo posterior vai estar baseado nessa junção de desenvolvimento e segurança nacional, que acaba na repressão. E a Petrobras é parte disso, enquanto os militares utilizam a estatal como parte dessa desse projeto ligado à repressão da classe trabalhadora.

Algumas companhias, como a Volkswagen, colaboraram com a ditadura, como informaram inquéritos do Ministério Público. No livro, vocês afirmam que a estrutura da Petrobras também foi utilizada para sustentar o golpe. Como foi essa participação da Petrobras na ditadura?

Foi algo impressionante. A Petrobras era uma espécie de modelo para as outras empresas, principalmente na maneira como funcionava a estrutura de repressão, em que muitas vezes se confundia o aparato dos órgãos de repressão com aquele que funcionava dentro da empresa.

Foi instituída uma divisão que ficou conhecida como Divin (Divisão de Informações da Petrobras). A Divin funcionou como um órgão de espionagem dentro da empresa, com uma atribuição orçamentária para funcionar, com agentes que faziam serviços de espionagem e acompanhavam todo o processo, por exemplo, de prisão de ativistas, estudantes e militantes que, não necessariamente, eram funcionários da Petrobras.

A Divin atuava dentro e fora da empresa e tinha um trânsito muito íntimo com os órgãos de repressão. Os agentes da Divin, na maior parte, frequentavam esses órgãos e tinham origem militar.

Na década de 1970, por exemplo, a Petrobras começa a fazer processos seletivos para contratar seus funcionários, como uma forma aparentemente democrática para contratação, mas os documentos mostram que a palavra final para uma contratação ocorrer era da Divin, com base na investigação sobre a vida dos selecionados.

Nesse contexto, vocês afirmam que houve uma perseguição a trabalhadores homossexuais, com a empresa atuando como um braço da ditadura nas políticas de temas morais, além das listas sujas, usadas como forma de exclusão de atores políticos, e utilizando essa estrutura de espionagem para tal. Como foi isso?

No geral, essas histórias são muito comuns e contadas pelos trabalhadores. Quando começa o processo de repressão, a partir do golpe de 1964, os órgãos de repressão fazem uma listagem de cerca de 190 trabalhadores que são considerados suspeitos. Essa listagem é ampliada e chega a 3 mil. Mas não era somente uma lista, física, mas sim uma comunidade de troca de informações.

Houve reuniões regulares com várias empresas trocando informações sobre seus trabalhadores. Encontramos documentação na Petrobras que cita que há uma orientação do chefe da Divin por compartilhar informações, por exemplo.

O chefe de segurança da Volkswagen, que é uma figura chave no inquérito aberto na investigação que gera o Termo de Ajuste de Conduta, por exemplo, é quem indica funcionários que vão trabalhar na Divin, da Petrobras.

Além disso, olhando as fichas de trabalhadores, há expressões bem pejorativas quando pairavam suspeitas de algum relacionamento homoafetivo. Houve nitidamente uma perseguição a alguns trabalhadores em função da homossexualidade, com situações muito absurdas, como a violação de correspondência e investigação na vizinhança, com agentes perguntando sobre a conduta pessoal, se recebia homens na residência.

Então há esse componente moralizante, conservador da ditadura, articulado com a perseguição a esses trabalhadores. Evidentemente, isso também demonstra uma forma de expressão da masculinidade dentro do local do trabalho, com a ideia de que há um determinado perfil que não serve para determinadas atividades dentro da Petrobras.

E qual foi o impacto da atuação da Petrobras e suas contratadas no Vale do Javari, no Amazonas? Como as populações indígenas tradicionais foram impactadas?

A atuação da Petrobras em várias localidades não é algo muito fácil de ser identificado porque a empresa atuava em um momento no qual os indígenas eram simplesmente invisibilizados pela ditadura, então nem se mencionava que havia populações indígena no local.

Os indígenas do Vale contam que, de repente, por ali, chegaram milhares de pessoas para fazer explorações sísmicas, com dinamites, menosprezando terras de populações que já eram identificadas e, também, de povos isolados.

Além de aviões e helicópteros sobrevoando a localidade, esses povos passaram a conviver com uma quantidade imensa de pessoas que levavam doenças, caçavam com dinamite nos rios, e atuavam em áreas que eram consideradas sagradas dos povos indígenas como, por exemplo, cemitérios, entre outras. Quando a exploração chegava ao fim, a Petrobras deixava por lá uma série de materiais descartados como lixo.

Essa atuação no Vale do Javari gerou, inclusive, conflitos com esses trabalhadores que eram de empresas contratadas e que, muitas vezes, iam para lá também em uma condição de completo desconhecimento do que iriam encontrar pela frente, com os indígenas reagindo a ocupação dos seus territórios, a invasão dos seus territórios. Portanto, esse segmento de trabalhadores também foram vítimas dessas ações.

Além dessas perseguições, houve também um acidente em Cubatão com, no mínimo, 93 mortes. Como a Petrobras tratou as comunidades locais após as mortes?

Esse incêndio que aconteceu em 1984 é uma coisa tenebrosa, com dezenas de homens, mulheres e até crianças que foram carbonizadas. O caso não resolvido até hoje. A empresa, na época, admitiu 93 óbitos, mas muita gente envolvida na investigação e membros da comunidade afirmam que esse número passa de 500. Então até hoje não há um acordo sobre o número de mortos.

Havia um duto da Petrobras que teve um vazamento de gasolina e, de repente, explodiu, gerando um incêndio de grandes dimensões em uma comunidade.

A Petrobras nunca assumiu a responsabilidade efetiva pelo que aconteceu na localidade conhecida como Vila Socó e, segundo documentos mostram, a empresa em si estava preocupada com a imagem, por isso, articula rapidamente um grupo de trabalho. A empresa paga algumas indenizações, em base a valores irrisórios já para a época, com um discurso de uma ação solidária porque ela não seria responsável por aquelas mortes.

O que a Petrobras poderia fazer para reverter esse apagamento histórico de perseguições e crimes ambientais?

A primeira coisa é reconhecer. Esse reconhecimento passa, inclusive, por admitir que parte do importante crescimento econômico que a empresa teve neste contexto é resultado de ter estabelecido para os seus trabalhadores um regime de extrema repressão e de superexploração do trabalho.

Precisamos que ela publicamente diga o que fez e peça desculpas à sociedade, com ações muito concretas, como a criação de centros de memória, financiamento de pesquisa sobre essa época, reparação econômica para os povos indígenas e os afetados pelos crimes.

A Volkswagen e a ditadura brasileira