Em nova retórica expansionista, Trump propõe controlar Gaza
5 de fevereiro de 2025A intenção do presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, de assumir o controle da Faixa de Gaza "a longo prazo" e retirar a população do território palestino causou um choque diplomático em todo o mundo. Contudo, a proposta do republicano não foge da ambição expansionista de sua nova administração.
Desde o retorno de Trump à Casa Branca, há pouco mais de duas semanas, sua abordagem "America First" (EUA primeiro) se traduziu numa clara intenção de adquirir novos territórios, mesmo depois de atravessar uma campanha eleitoral com promessas de manter a nação fora de "guerras eternas".
Trump levantou a possibilidade de os EUA assumirem o controle de Gaza durante uma coletiva de imprensa na Casa Branca nesta terça-feira (04/02), ao lado do primeiro-ministro israelense, Benjamin Netanyahu. Ele disse que imagina a construção de um lugar onde comunidades internacionais possam viver em harmonia.
"Os Estados Unidos vão assumir o controle da Faixa de Gaza, e faremos um grande trabalho lá. Será nossa responsabilidade desmontar todas as bombas não detonadas, nivelar o solo, nos livrar dos edifícios destruídos e terraplanar a área para impulsionar o desenvolvimento econômico que gerará uma quantidade ilimitada de empregos e moradias para a população", disse Trump. Em outro momento, citou que a estratégia permite "reconstruir a força dos EUA na região".
Trump também sugeriu deslocar mais de 2 milhões de palestinos que vivem em Gaza, sugerindo que a região havia se tornado inabitável após quase 16 meses de guerra entre Israel e o grupo radical islâmico Hamas. O ataque terrorista do Hamas contra Israel, em 7 de outubro de 2023, foi o estopim do conflito.
"Você transformará o local em um lugar internacional e inacreditável. Acho que o potencial e a Faixa de Gaza são inacreditáveis", disse Trump. "E acho que o mundo inteiro, representantes de todo o mundo, estarão lá e viverão lá. Os palestinos também, os palestinos viverão lá. Muitas pessoas viverão lá", completou.
Críticos o acusam de tratar o território palestino como uma propriedade imobiliária. No ano passado, o genro e ex-assessor de Trump, Jared Kushner, descreveu Gaza como uma região "valiosa" à beira-mar.
Já Netanyahu elogiou Trump por "pensar fora da caixa", mas nenhum dos líderes abordou a legalidade da proposta. O premiê israelense declarou ainda que o plano do americano seria uma ideia que "pode mudar a história". "Penso que é algo que pode mudar a história. E vale a pena tentar", acrescentou.
Desde que voltou ao poder, em 20 de janeiro, Trump reiterou a proposta de tirar os palestinos de Gaza em várias ocasiões e insistiu que a Jordânia e o Egito deveriam aceitar mais refugiados palestinos do enclave, uma ideia rejeitada categoricamente por esses dois países, assim como por Emirados Árabes Unidos, Catar, Arábia Saudita, Autoridade Palestina e Liga Árabe. No entanto, essa foi a primeira vez que Trump abordou o reassentamento como uma solução permanente e afirmou que os EUA deveriam assumir o controle do enclave.
'Ideia é capaz de incendiar a região'
A proposta foi imediatamente rechaçada por opositores americanos e diversos países da comunidade internacional que defendem uma solução de dois Estados para o conflito israelo-palestino, incluindo China, Austrália e Arábia Saudita.
Jordânia, Egito e a Liga Árabe, que reúne 22 nações, também têm se posicionado contra qualquer tentativa de retirar palestinos de suas terras. Defensores dos direitos humanos consideram esta proposta como uma tentativa de limpeza étnica. Qualquer deslocamento forçado provavelmente violaria a lei internacional.
O presidente da Autoridade Nacional Palestina (ANP), Mahmoud Abbas, rejeitou na proposta do presidente dos Estados Unidos e ressaltou que o enclave é uma "parte integral" do Estado palestino. "Não permitiremos que os direitos do nosso povo, pelos quais lutamos há décadas e pelos quais fizemos grandes sacrifícios, sejam violados", disse Abbas em uma mensagem.
O oficial do Hamas, grupo palestino considerado uma organização terrorista pela União Europeia e os EUA, Sami Zuhri, chamou os comentários de Trump de "ridículos e absurdos". "Qualquer ideia desse tipo é capaz de incendiar a região", disse.
Em reação à declaração de Trump, o Ministério do Exterior da Arábia Saudita disse nesta quarta-feira que não estabelecerá relações diplomáticas com Israel a menos que haja um Estado palestino independente e afirmou que o país se opõe "firmemente" a qualquer violação dos direitos legítimos do povo palestino, incluindo "tentativas de deslocá-los de suas terras".
A chancelaria saudita enfatizou que sua posição é "inegociável" e que alcançar uma "paz justa e duradoura" é "impossível sem que o povo palestino obtenha seus direitos legítimos de acordo com as resoluções internacionais", como, segundo ressaltou, "comunicou ao governo anterior dos EUA e ao atual".
Já o presidente Luiz Inácio Lula da Silva disse que a postura de Trump "não tem sentido". "Os Estados Unidos participaram do incentivo a tudo que Israel fez na Faixa de Gaza. Então não tem sentido se reunir com Netanyahu e dizer vamos ocupar Gaza, recuperar Gaza e morar em Gaza. E os palestinos vão para onde? Onde eles vão viver? Qual é o país deles? É uma coisa incompreensível. As pessoas precisam parar de falar o que lhes vem na cabeça e precisam começar a falar o que é razoável", afirmou em entrevista a rádios de Minas Gerais na manhã desta quarta-feira.
Contra a solução de dois Estados
A sugestão de Trump parece descartar uma solução de dois Estados, em favor de algum tipo de novo paradigma que envolva os EUA atuando como um tampão na região.
O Hamas chegou ao poder em Gaza em 2007, depois que os soldados e colonos israelenses se retiraram em 2005, mas o local ainda é considerado território ocupado por Israel pelas Nações Unidas. Hoje, Israel e Egito controlam todo o acesso a Gaza, inclusive o marítimo.
Contudo, as Nações Unidas e os Estados Unidos há muito endossam a visão de que uma solução de dois Estados vivendo lado a lado dentro de fronteiras seguras e reconhecidas seria a mais viável. Os palestinos querem ser reconhecidos como um país cujos territórios se distribuem na Cisjordânia, em Jerusalém Oriental e na Faixa de Gaza.
A posição de Trump indica um rompimento desta tradição diplomática. Questionado se é favorável a reconhecer a Palestina como um Estado, o americano disse que sua sugestão "não significa nada sobre dois Estados, um Estado ou qualquer outro Estado".
Jon Alterman, ex-funcionário do Departamento de Estado que agora dirige o programa do Oriente Médio no Centro de Estudos Estratégicos e Internacionais de Washington acredita ser improvável que os habitantes de Gaza deixem a região voluntariamente.
"Muitos habitantes de Gaza descendem de palestinos que fugiram de partes da atual Israel e nunca puderam voltar para suas casas anteriores. Estou cético de que muitos estariam dispostos a deixar até mesmo uma cidade destruída. É difícil para mim imaginar um final feliz para a reconstrução maciça de uma Gaza despovoada."
Os palestinos são há muito tempo assombrados pelo que chamam de Nakba, que se refere ao êxodo palestino durante e após a guerra árabe-israelense de 1948. Estima-se que cerca de 700 mil pessoas tenham fugido ou sido forçadas a deixar suas casas no que hoje é Israel e nos territórios palestinos. Nakba lembra ainda que muitos refugiados palestinos no exterior permanecem apátridas até hoje.
Milhares foram expulsos ou fugiram para países árabes vizinhos, incluindo Jordânia, Síria e Líbano, onde muitos ainda vivem em campos de refugiados. Outros se deslocaram para Gaza.
Depois do início do atual conflito em Gaza, muitos habitantes da região se recusaram a deixar o enclave por temer que isso pudesse levar a outro deslocamento permanente como ocorreu em 1948. O Egito e outras nações árabes se opõem a qualquer tentativa de deslocar os palestinos.
Novo modelo expansionista americano
Apesar das reações, o interesse de Trump segue o modelo escolhido por ele para orientar seu segundo mandato – deteriorando laços com aliados próximos, como o Canadá e o México, e vendo o mundo como uma grande oportunidade de negócios.
Essa visão foi enfatizada pelo fundo soberano criado por ele na última segunda-feira. Segundo Trump, o dinheiro investido em uma carteira de ações pode, inclusive, ser usado para comprar a operação americana da rede social TikTok.
No caso dos países vizinhos, Trump ameaçou penalidades econômicas que poderiam impactar fortemente a própria economia americana se eles não aderirem a exigências de segurança de fronteira.
Trump também já defendeu a possibilidade de o país retomar o Canal do Panamá, propôs que os EUA assumissem o controle da Groenlândia da Dinamarca e sugeriu repetidamente que o Canadá deveria ser anexado como o 51º estado dos EUA.
Pesquisa do instituto Ipsos, contratada pela agência de notícias Reuters, mostra pouco apoio público a essas ideias, mesmo no Partido Republicano.
Apenas 16% dos adultos americanos apoiaram a ideia de os EUA pressionarem a Dinamarca a vender a Groenlândia, segundo a pesquisa realizada em 20 e 21 de janeiro. Cerca de 29% apoiaram a ideia de retomar o controle do Canal do Panamá.
Já 21% concordaram com a ideia de que os EUA têm o direito de expandir seu território no Hemisfério Ocidental e apenas 9% dos entrevistados, incluindo 15% dos republicanos, disseram que os EUA deveriam usar força militar para garantir novos territórios.
Para Will Will Wechsler, diretor sênior de programas do Oriente Médio no think thank Atlantic Council, Trump pode não estar falando sério quando cita um controle de Gaza. Para o especialista, o presidente repete modelo de assumir posições extremas como estratégia de barganha.
"O presidente Trump está seguindo sua cartilha habitual: mudar os objetivos para aumentar sua vantagem em antecipação a uma negociação futura", disse Wechsler. "Nesse caso, trata-se de uma negociação sobre o futuro da Autoridade Palestina."
A estratégia é diferente de sua posição como candidato à presidência, quando Trump falava em termos isolacionistas sobre a necessidade de acabar com as guerras estrangeiras e fortalecer as fronteiras. Ele sugeriu que a Europa assumisse amplamente a causa da Ucrânia em sua guerra com a Rússia, em vez dos Estados Unidos.
gq/cn (Reuters, AP, AFP, ots)