Discurso religioso pode impulsionar reeleição de Bolsonaro?
8 de agosto de 2022Apostando em uma retórica moralizante e permeada por referências religiosas, o presidente Jair Bolsonaro se lança à corrida pela reeleição tentando repetir o apoio do eleitorado cristão e conservador que recebeu em 2018.
Naquele ano, os quase 70% dos votos evangélicos que recebeu no segundo turno, segundo cálculos feitos com base em dados do Instituto Datafolha, foram apontados por analistas políticos como decisivos para a vitória do chefe do Executivo.
Apesar desse apoio considerado decisivo e de os evangélicos serem hoje mais de 30% da população, segundo estimativas, não é apenas a esse grupo que o presidente acena. Maioria no Brasil, católicos também estão no radar do mandatário.
Nos últimos meses, Bolsonaro tem ido a eventos evangélicos com frequência quase semanal. Só em julho, esteve em diversos encontros com fiéis no Rio de Janeiro, em Minas Gerais, São Paulo, Maranhão, Ceará, Espírito Santo e Rio Grande do Norte. Ao longo da corrida ao Planalto, o presidente também deverá participar por vídeo, com entradas ao vivo, de cultos organizados por lideranças evangélicas.
A tática se repete, embora em menores proporções, junto ao eleitorado católico. Em 16 de julho, Bolsonaro leu passagens bíblicas e discursou ao lado de um padre em Natal (RN) sob o mote "Deus, pátria, família e liberdade". O lema é semelhante ao da Ação Integralista Brasileira ("Deus, pátria e família"), movimento de extrema direita ultranacionalista criado nos anos 1930 sob inspiração do fascismo italiano.
No final de julho, em seu discurso de lançamento de candidatura, Bolsonaro, que se autodeclara católico e tem o apoio de lideranças de peso do setor evangélico, fez sete menções a Deus – sua esposa, a protestante Michelle Bolsonaro, o invocou outras 27 vezes no palanque.
Na ocasião, Michelle apresentou o marido como um "escolhido de Deus" que tem um "projeto de libertação para a nossa nação", aconselhou a plateia a não negociar com o mal e foi festejada aos gritos de "aleluia".
Bolsonaro, por sua vez, afirmou rezar diariamente um Pai Nosso para que o "povo brasileiro nunca experimente as dores do comunismo" e antagonizou com seu principal rival, o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, ao repisar velhas máximas da cartilha conservadora sobre aborto, drogas e questões de gênero.
Ao retratar a sua reeleição como uma batalha do bem contra o mal, se apropriar de Deus como cabo eleitoral e insistir na pauta de costumes, Bolsonaro indica, segundo especialistas ouvidos pela DW Brasil, qual será a tônica da sua campanha até outubro.
A julgar pelos resultados das pesquisas eleitorais mais recentes, a tática pode estar surtindo efeito ao menos entre o eleitorado evangélico. Números do Datafolha mostram que, num intervalo de dois meses, Bolsonaro abriu vantagem de dez pontos percentuais sobre Lula e lidera atualmente a preferência desse segmento, com 43% das intenções de voto.
Popularidade de Bolsonaro entre evangélicos possivelmente subestimada
Embora os dados indiquem uma clara tendência de crescimento da candidatura bolsonarista entre evangélicos, há quem alerte que o candidato do PL pode estar tendo sua popularidade junto a esse eleitorado subestimada.
Há três motivos para isso. O primeiro, segundo Victor Araújo, cientista político e pesquisador sênior da Universidade de Zurique, é que existe um viés de não resposta na pesquisa do Datafolha. Alguns eleitores se recusam a participar dos levantamentos alegando parcialidade do instituto, o que acaba gerando uma distorção difícil de corrigir.
"Bolsonaristas e antipetistas tendem a responder menos à pesquisa, o que acaba inflacionando bastante a intenção de voto no Lula", aponta Araújo, autor do livro A religião distrai os pobres? O voto econômico de joelhos para a moral e os bons costumes, lançado neste ano.
O segundo problema é a falta de dados precisos e atualizados sobre a filiação religiosa dos brasileiros – segundo o Datafolha, em 2020, 31% da população era evangélica. Araújo cita números semelhantes, baseados em projeções feitas com informações de censos anteriores – o último foi realizado há 12 anos, em 2010.
Mas há quem sustente que a quantidade de evangélicos pode ser maior. É o caso do pastor Ariovaldo Ramos, da Frente de Evangélicos pelo Estado de Direito. Ele diz que as igrejas pentecostais independentes têm crescido nas periferias em ritmo muito superior ao das igrejas denominacionais – uma evolução superior mesmo em relação às denominacionais pentecostais, como a Assembleia de Deus e a Universal –, e que o fenômeno está fora do radar dos analistas políticos. "Estamos às cegas, estatisticamente falando. Acho que o voto bolsonarista está sendo subestimado sim", afirma o pastor.
O terceiro aspecto problemático é que o Datafolha não diferencia entre evangélicos pentecostais e não pentecostais. Segundo Araújo, o primeiro grupo é maior e só cresceu nas últimas décadas, enquanto o segundo segue encolhendo. Cálculos dão conta de que os adeptos do pentecostalismo seriam hoje 65% – em sua maioria mulheres, negros e pobres.
Esses mesmos pentecostais, conforme Araújo, tendem a ser muito mais conservadores e, portanto, mais avessos a candidatos de esquerda, que veem como ameaça à família e aos valores tradicionais. O antipetismo nessas camadas populares é histórico, precede o próprio bolsonarismo, e o alinhamento com o presidente acaba ocorrendo por pragmatismo, a fim de evitar males maiores.
Embora o aumento recente do Auxílio Brasil às vésperas da eleição possa ter influenciado a melhora das intenções de voto em Bolsonaro também entre os pentecostais, Araújo defende que o voto desse eleitor é majoritariamente guiado por convicções morais – prova disso seria a rejeição consistente ao PT mesmo entre pentecostais beneficiários do Bolsa Família ao longo dos últimos anos.
"Para essa porção do eleitorado, questões relacionadas à moral, essa guerra cultural, espiritual, tudo isso importa muito mais do que inflação, projeção da economia e PIB", argumenta Araújo.
A força da pauta moral
O pastor Ramos faz avaliação semelhante. Para ele, se a campanha for conduzida exclusivamente em cima da pauta moral, a tendência é que Bolsonaro leve o voto do estrato religioso mais pobre e conservador. Em um país marcado pela desigualdade social, a religião muitas vezes é a única rede de apoio de que essas pessoas dispõem.
"Evangélicos têm valores bastante substanciados. Se eles sentem que esses valores são atacados, eles refluem, mesmo os mais à esquerda", comenta Ramos. "Os pentecostais, mas também os católicos carismáticos, têm uma visão maniqueísta do mundo, marcada pela pregação da batalha espiritual contra o mal. E se você está combatendo o mal, vale tudo."
Para Ramos, o eleitorado pobre e religioso é sensível à pauta de costumes porque foi abandonado pelo poder público e está exposto a mazelas de outra ordem, muito distantes das questões que afligem a classe média brasileira.
Ele exemplifica seu argumento com a discussão sobre a criação de banheiros unissex. "Os crentes entram em pânico, dizem que não querem que homem entre no banheiro com a filha deles. Mas por que eles dizem isso? Porque temos uma cultura do estupro neste país."
"Reduzir tudo à questão econômica é um erro. A fome, a privação, são fatores determinantes e têm causado refluxo nas linhas bolsonaristas, mas têm limites. E o limite é a fé, a sensação de se entregar por um bem maior", afirma. "São outros pressupostos – religiosos, deturpados –, que sustentam outro raciocínio."
É a esse "bem maior" que Michelle Bolsonaro apela quando defende a reeleição do marido como "cura para o nosso Brasil", afirma Ramos.
A entrada da primeira-dama na campanha ocorre num contexto de rejeição de Bolsonaro por parte do eleitorado feminino – também entre as evangélicas, avessas ao tom belicista e agressivo do mandatário.
Professora do Departamento de Sociologia da Universidade de Brasília, a antropóloga Jacqueline Moraes Teixeira diz que entre as mulheres evangélicas paira um sentimento de expectativas não cumpridas em relação a Bolsonaro, algo agravado pela pandemia e pela crise econômica. E é aí que a primeira-dama entra como uma espécie de avalista do presidente.
O poder persuasivo de Michelle junto a esse segmento é atribuído à própria história de vida dela, vista como "uma mulher que não abandona a família, se converte, supera dificuldades e se casa com um homem imperfeito, assumindo o compromisso de transformá-lo em um grande líder", aponta Teixeira.
"A participação da Michelle na campanha torna a centralidade do discurso religioso algo orgânico na campanha. Para essas eleitoras, ao votar no Bolsonaro, é como se elas estivessem votando nela", afirma a antropóloga.
Teixeira ressalta ainda outros dois medos do eleitorado evangélico que vêm sendo mobilizados com sucesso pela campanha bolsonarista: a narrativa de que a liberdade religiosa deles estará sob ameaça em um governo de oposição, e a ideia de que o chefe do Executivo é alvo de perseguição.
Reeleição difícil
Há dúvidas, contudo, sobre se o foco no discurso religioso e moralizador será suficiente para garantir a reeleição.
"Bolsonaro vai continuar apostando nessa pauta porque não tem outra opção, mas não acredito que terá o mesmo papel e visibilidade que teve em 2018, porque a vida das pessoas piorou e elas sabem disso", analisa Ana Carolina Evangelista, diretora-executiva do Instituto de Estudos da Religião (Iser). "Se antes o Bolsonaro conseguia se descolar dos problemas do país, hoje, depois de quatro anos no poder, isso já não é mais possível."
Para Evangelista, mesmo o apoio maciço de lideranças religiosas ao projeto bolsonarista de governo não deve ser suficiente para garantir o voto religioso. "Essas lideranças também esperam para ver para que lado pendem as suas bases. Elas influenciam, mas também são influenciadas. Não é só um movimento de mão única."
O antropólogo Juliano Spyer diz ver o eleitorado evangélico ainda muito dividido e pouco entusiasmado com um eventual segundo mandato de Bolsonaro. Segundo o Datafolha, 22% não optam nem por ele, nem por Lula – 11% aderem a outros candidatos, 7% pretendem anular o voto, e 4% estão indecisos. "Há um saturamento da politização da Igreja, e isso é um fator de desgaste para os fiéis", comenta.
Já Araújo diz não acreditar em uma vitória de Bolsonaro por outros motivos, de ordem matemática: os pentecostais ainda não são numerosos o suficiente. "Se eles já fossem hoje o que a gente acredita que eles serão em 2040, de 30% a 35% dos eleitores, muito provavelmente o Bolsonaro venceria, porque dentro desse grupo a pauta moral tem uma propulsão eleitoral muito forte", afirma.