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"Derrotar Pinochet era recuperar a liberdade"

Victoria Dannemann ca
5 de outubro de 2018

Figura-chave da oposição a Augusto Pinochet e do triunfo do "não" no plebiscito chileno de 1988, ex-presidente Ricardo Lagos relembra, em entrevista à DW, o dia que marcou o início do fim da ditadura em seu país.

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Apoiadores do "não" festejam resultado do plesbiscito de 1988
Apoiadores do "não" festejam resultado do plesbiscito de 1988Foto: picture-alliance/dpa/epa

Ricardo Lagos Escobar tinha 50 anos em 5 de outubro de 1988, dia em que um plebiscito no Chile deveria decidir se o ditador Augusto Pinochet poderia ou não continuar no poder até março de 1997. Com a vitória do "não", por quase 56% dos votos, eleições foram convocadas para 1989, e Pinochet deixou o poder no início de 1990.

Numa época em que mal havia espaços para o debate político, Lagos era um dos principais líderes da oposição. Entre 2000 e 2006, foi presidente do Chile. Hoje, aos 80 anos, olha em retrospectiva para esse dia que mudou a história do país e pôs fim à ambição de Pinochet de permanecer 25 anos no poder, há exatamente 30 anos.

Em entrevista à DW, ele recordou o nervosismo daquele dia: "Lembro-me que, quando o triunfo do 'não' foi confirmado, por quase 56% dos votos, os representantes do Parlamento Europeu, emocionados, confessaram que era um momento comparável à entrada de Charles de Gaulle em Paris. Foi uma experiência muito forte."

Chile Referendum 1988
Ricardo Lagos presidiu o Chile entre 2000 e 2006Foto: Archivo Ricardo Lagos E., Fundación Democracia y Desarrollo

DW: Que lembranças pessoais o senhor tem do dia 5 de outubro de 1988?

Ricardo Lagos: Foi um dia memorável. Não me lembro de um nível de mobilização social maior do que o ocorrido naquele 5 de outubro. Havia uma grande convicção de que era a forma de recuperar a liberdade. Milhões se levantaram cedo para votar. Havia longas filas, e as pessoas se comportavam de forma exemplar. Foi um dia de grande responsabilidade, nervosismo e tensão. Havia muito medo se o plebiscito ia funcionar ou não. Onde já se tinha visto no mundo um ditador que partiu porque perdeu um plebiscito ou que garantias tínhamos de que o resultado seria respeitado?

Qual foi a importância da contagem paralela de votos?

Tínhamos ao menos dois representantes em cada uma das mais de 40 mil mesas de votação em todo o Chile, mesmo nos lugares mais remotos. Devido a essa contagem, confiávamos que a ditadura não seria capaz de anunciar um resultado diferente, mas havia nervosismo, especialmente à tarde, quando se pediu às pessoas que não saíssem para festejar até que houvesse informação oficial.

Passávamos os dados à medida que iam chegando, o que trouxe tranquilidade. Desde o início da apuração, ficou claro que o triunfo era nosso.

Chile Referendum 1988
Ricardo Lagos e Patricio Aylwin se abraçam em 5 de outubro de 1988, em Santiago do ChileFoto: Archivo Ricardo Lagos E., Fundación Democracia y Desarrollo

Qual era sua expectativa antes do plebiscito, estava confiante de que venceria?

Dispúnhamos de dados, pesquisas, fizemos alguns grupos focais e também havia levantamentos americanos muito favoráveis a nós, praticamente com o resultado final que ocorreu. Mas não queríamos que isso fosse divulgado porque poderia criar alguns problemas e também desmobilizar os nossos apoiadores.

Mas esse triunfo se desenvolveu muito antes. Como se planejou a derrota de Pinochet nas urnas?

Aqui houve uma grande discussão sobre se era possível ou não fazer o plebiscito e que garantias tínhamos. Nossa resposta foi sempre a mesma: vai depender de nós a forma como nos organizamos e se nos atrevemos.

Outros diziam que era preciso usar métodos mais eficazes de luta, mas isso não correspondia às características da sociedade chilena. Vamos falar francamente: o fracasso do atentado contra Pinochet em 1986, em que cinco de seus guarda-costas morreram, mas ele não, mostrou que esse caminho para se livrar dele estava exaurido e, portanto, o que restava era enfrentar as urnas

De acordo com a Constituição de 1980, Pinochet tinha que recorrer à consulta popular se quisesse continuar por mais oito anos. "Se nos prepararmos, vamos triunfar", disse o senhor naquela ocasião. Uma das manobras da ditadura foi exigir que, para votar, seria preciso inscrever-se previamente nos registros eleitorais...

O primeiro a se inscrever, é óbvio, foi Pinochet, e todos os seus apoiadores foram se registrar. O problema era quantas pessoas do nosso lado iriam fazer o mesmo.

Pinochet tinha 40% de apoio dos cidadãos, e o total de eleitores em potencial era de cerca de 8 milhões. Se mais de 7 milhões se registrassem, venceríamos por uma diferença de mais de 500 mil votos, e foi assim, mas isso implicou uma mobilização muito grande.

O apoio da comunidade internacional foi fundamental. Da rejeição ao golpe de Estado à solidariedade e apoio de numerosas delegações estrangeiras que vieram como observadores. Qual a sua lembrança daquele momento?

Lembro-me que quando o triunfo do "não" foi confirmado, por quase 56% dos votos, os representantes do Parlamento Europeu, emocionados, confessaram que era um momento comparável à entrada de Charles de Gaulle em Paris. Foi uma experiência muito forte.

Derrotou-se Pinochet com lápis e papel, como o senhor disse uma vez...

Sim, mas antes disso houve panelaços, convocações de greves nacionais e também pessoas que morreram por achar que isso poderia ser feito de outra maneira.

Um conjunto de acontecimentos que foram convergindo e preparando aquele momento: a crise econômica de 1982, na qual o PIB do Chile caiu 14%, como resultado das políticas neoliberais da ditadura. No ano seguinte, a primeira convocação de uma greve geral dos trabalhadores do cobre marcou o início do despertar.

O plebiscito foi o principal marco na volta à democracia?

Sem dúvidas. A ampla mobilização social e política que foi criada com muita força e coragem é comparável apenas ao nível de fratura na sociedade chilena, produto de 16 anos de ditadura naquela época.

Para o senhor, foi algo parecido talvez com a sua eleição para presidente?

Não, nada a ver! Quem concorre à presidência pode ganhar ou perder, mas trata-se de um acontecimento normal. Um jornalista me perguntou 30 anos atrás o que eu estava sentindo. 'É o melhor dia da minha vida', disse a ele. Ele me consultou sobre rumores em torno de minha candidatura à presidência e respondi: não sei se são verdadeiros, mas tenho certeza que, se eu ganhar, a emoção não será como hoje. E não foi.

É claro que [quando se ganha uma eleição presidencial] se está feliz e consciente de que se assume uma responsabilidade, mas no plebiscito havia, além disso, uma emoção contida de tantos anos, aquela sensação de algo que não volta a acontecer enquanto estivermos vivos.

Olhando em retrospecto, "a alegria chegou", como dizia o slogan da campanha do "não" no plebiscito sobre Pinochet?

A alegria que chega é quando se pode decidir por conta própria. Então ela começa a se dissipar porque as demandas continuam a aumentar e, às vezes, a economia não age com a rapidez suficiente para satisfazê-las.

Hoje temos que enfrentar novas realidades. Não há confiança na liderança política partidária ou nas instituições políticas como havia 30 anos atrás, e a política deixou de ser tão vertical.

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