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Como a seca ameaça a pesca do pirarucu na Amazônia

10 de fevereiro de 2025

Ciência tenta entender o impacto do fenômeno sobre um dos maiores peixes de água doce do mundo e sobre quem depende dele. Comunidades ribeirinhas ajudaram a salvar a espécie, mas agora enfrentam dificuldades.

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Brasilien Amazonas 2024 | Nachhaltiger Fang des Pirarucu-Fisches
Foto: Miguel Monteiro/Mamiraua

A temporada de pesca do pirarucu, o maior peixe de escama de água doce do mundo e habitante da Amazônia, chega ao fim de um jeito anormal. Nunca os pescadores tiveram que estender o trabalho até meados de fevereiro e, ainda assim, retornarem com um carregamento abaixo do esperado. 

O grupo de Raimundo Queiroz passou dois longos períodos nas águas tentando fisgar os mil peixes que tinha autorização para pescar, mas não conseguiu. Voltaram para casa, em Alvarães, Amazonas, com 911, e com a preocupação do que virá pela frente.

"A seca foi muito grande e quando o rio começou a encher foi de uma vez. A gente lutou muito, mas não conseguiu pescar toda a nossa cota", diz Queiroz à DW, ex-presidente da Colônia de Pescadores de Alvarães, que ajuda a garantir renda para quase 200 famílias da região, no médio curso do rio Solimões, e atual coordenador do Acordo de Pesca do Pantaleão.

Faz 25 anos que a relação dos ribeirinhos com o gigante da Amazônia precisou mudar, e Queiroz foi um dos que incentivaram a adaptação. Por causa da captura desenfreada no passado, o pirarucu entrou em risco de extinção e teve a pesca proibida. Só depois de muita ciência aplicada e cooperação, o peixe voltou a ser visto nos lagos amazônicos. 

"Foi muito difícil, mas a gente entendeu que precisava fazer a preservação para que tivesse sempre peixe para trabalhar. O pirarucu voltou, mas agora a gente enfrenta um novo problema", afirma Queiroz.

Nos últimos dois anos, foi a água que faltou. A seca na Amazônia, onde está a maior bacia hidrográfica do planeta, foi extrema e levou alguns rios aos menores níveis já registrados. A história de sucesso que salvou o pirarucu precisa de novo se adaptar a um novo cenário. 

O efeito da seca

Ana Cláudia Gonçalves percorre as comunidades no entorno da Reserva de Desenvolvimento Sustentável Mamirauá, em Tefé, a 600 quilômetros de Manaus, e tenta acudir os ribeirinhos. Filha de pescadores, ela se transformou numa das figuras mais respeitadas da região pelo seu conhecimento tradicional e técnico. 

"Todos os grupos assessorados por nós estão tendo dificuldades para pescar", diz Gonçalves à DW. Ela coordena o Programa de Manejo Florestal Comunitário do Instituto Mamirauá e apoia 45 comunidades, três colônias e uma associação de pescadores.

Homens dentro de canoa em rio, observados por outros homens em outra canoa, atrás de área com mato
Na seca, o mato cresceu muito nas áreas normalmente alagadas, dificultando acesso dos barcos dos pescadoresFoto: Miguel Monteiro/Mamiraua

Durante a seca, o mato cresceu muito nas áreas normalmente alagadas e, no período autorizado da pesca, por causa da vegetação alta, os barcos não conseguem chegar em alguns pontos. Segundo Queiroz, o pirarucu "se esconde" nesses espaços.  

"Antes, a gente não conseguia pescar porque faltava material. Hoje, temos material, temos tudo, mas não conseguimos chegar nos lugares. A seca forte e o alagamento rápido demais está atrapalhando muito", diz.  

A dificuldade se repete em outras regiões do estado. No curso do médio do rio Juruá, em Carauari, a seca também afetou profundamente a atividade dos pescadores. "O impacto está mais na logística de pesca e no transporte do peixe. Com a água baixa, muita gente não conseguiu a pesca", afirma João Campos-Silva, presidente do Instituto Juruá e pesquisador associado do Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (Inpa). 

O experimento que deu certo 

A grandiosidade do pirarucu, que pode chegar a três metros de comprimento, contribuiu para que ele se tornasse vulnerável. A espécie também tem baixa taxa de fecundidade, respiração aérea e um hábito sedentário que facilita sua captura. 

Já no fim de 1800, o pirarucu é listado como principal recurso pesqueiro da Amazônia. A superexploração levou o peixe ao risco de extinção – o que chegou a acontecer de fato em algumas regiões. Em 1999, sua pesca foi proibida no estado do Amazonas e, em 2004, a regra passou a valer nacionalmente, segundo o Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Renováveis (Ibama). 

O cenário dramático desafiou cientistas e órgãos ambientais a experimentarem. Os primeiros testes de conservação aliado à pesca controlada surgiram com o Instituto Mamirauá, criado em 1999. O método científico foi desenvolvido com base no conhecimento tradicional: os pescadores contam os peixes adultos que sobem à superfície para respirar e, a partir do número obtido, planejam o quanto poderão fisgar. Todo esse processo é faz parte do chamado de manejo, ou gerenciamento da pesca.

Depois dos resultados promissores documentados por Mamirauá, o Ibama começou a liberar o manejo comunitário em 2005. A captura permitida é de no máximo 30% dos peixes adultos do total contabilizado nos lagos naturais onde os pescadores atuam.

"O peixe precisa ter mais de 1,5 metro. Com esse tamanho, a gente garante que pelo menos 50% dos peixes que estão ali já se reproduziram pelo menos uma vez", explica James Bessa, analista ambiental do Ibama no Amazonas.

Pesca abaixo da cota

Para 2024, a cota de captura autorizada pelo órgão foi de 103 mil peixes, com base na contagem do pirarucu feita no ano anterior. Mas o total retirado dos lagos deve ficar bem abaixo desse patamar, prevê Bessa. 

"Faz dois anos que a cota autorizada não é atingida. No ano passado, a eficiência da pesca foi de 70%, nesse ano, que teve uma seca mais extrema ainda, não vai chegar em 50%", estima Bessa, lembrando que o manejo foi estendido até 10 de fevereiro por causa dessa dificuldade. 

Desde que foi estabelecido, esse processo da preservação dos lagos e da pesca controlada costumava acontecer no período sem chuvas na Amazônia, de setembro a novembro. Mas nos últimos dois anos, o calendário precisou se ajustar.

O manejo comunitário, afirma Gonçalves, também representou um "grito de liberdade" para os pescadores que, até então, se viam obrigados a vender o pescado para a figura do patrão, que pagava o quanto queria e mantinha uma relação de trabalho análoga à escravidão. 

Mulher coloca mão dentro de um pirarucu, através de um corte transversal no peixe
Limpeza do pirarucu: gerenciamento comunitário da pesca representou "grito de liberdade" para os pescadoresFoto: Miguel Monteiro/Mamiraua

"Depois que o manejo começou, os pescadores conseguem negociar, vender para os comerciantes que pagam melhor e negociam a produção antes da pesca", diz a técnica sobre a importância do método na renda das comunidades. 

Incerteza sobre o futuro

Há mais de uma década, Ana Cláudia Gonçalves diz notar as mudanças nos padrões do clima na região. Os pescadores não conseguem mais entender os sinais vindo da natureza que antecipam uma cheia forte, ou uma seca brava, diz Gonçalves sobre o olhar atento e saber tradicional dos ribeirinhos. Nos dois últimos anos, período em que a Amazônia enfrentou as duas piores secas consecutivas, o problema se escancarou.

"A gente vive um novo desafio agora. A gente tinha um cenário praticamente muito cômodo do manejo, com pesca acontecendo sempre no mesmo período, tudo tranquilo. Agora temos que mudar", diz a técnica.

As conversas sobre um ajuste permanente no calendário anual já começaram. Há reuniões programadas com pescadores para discutir as adaptações no manejo e no prazo das autorizações de pesca emitidas pelo Ibama, assim como melhoras na logística e nas embarcações.

"As comunidades estão ligadas nas mudanças climáticas. O processo do pulso de inundação e de seca do rio se modificou, ele está secando um mês antes e está voltando a encher um mês e meio depois. Está tendo mais flutuação", cita Bessa.

O efeito de todos esses fenômenos sobre o pirarucu ainda é desconhecido. Do Juruá,  Campos-Silva, lembra que a biologia da espécie é adaptada a lagos rasos com pouco oxigênio. "No entanto, ainda não temos estudos conclusivos para saber se a seca extrema tem prejudicado a reprodução e o crescimento do peixe", diz o biólogo à DW. 

Gonçalves, do Mamirauá, concorda que ainda são poucos dados disponíveis para avaliação. Um estudo em andamento focado na desova vai ajudar a trazer algumas respostas. 

"Depois de concluir o monitoramento da pesca, que começou em 2024 mas que está se estendendo para 2025, a gente já vai ter a possibilidade de avaliar melhor os impactos dessa seca sobre a estrutura da população de peixes", comenta Gonçalves.