Com Hugo Chávez morre um ícone latino-americano – apesar de tudo
6 de março de 2013"Isso aqui continua cheirando a enxofre", comentou o presidente da Venezuela, Hugo Chávez, em seu discurso perante a Assembleia Geral da ONU, em setembro de 2006. "Ontem, o diabo esteve aqui, e ele falou como se fosse dono do mundo", prosseguiu, referindo-se ao então presidente dos Estados Unidos, George W. Bush.
Chávez era conhecido por suas palavras sem rodeios e metáforas floreadas. Na maioria dos casos, suas declarações públicas se voltavam contra os EUA e o "imperialismo norte-americano". Em sua luta declarada contra o neoliberalismo, o líder venezuelano conquistou o coração de seus eleitores e os de numerosos esquerdistas em todo o mundo. Para muitos, ele realmente alcançou o status de redentor e astro de mídia, que cultivava em seu próprio show televisivo.
Isso muito beneficiou sua carreira política. Porém atribuir-lhe mero calculismo não seria justo com sua pessoa: Chávez tinha uma missão, e sua origem conferia um alto grau de autenticidade à retórica marcial que adotava.
Homem do povo
Embora sem ser um caudilho, no sentido estrito do termo, o ex-presidente venezuelano se inseria na tradição desses carismáticos líderes de milícias, que governaram amplas regiões da América Latina desde as guerras pela independência há 200 anos. E nenhuma outra área foi tão dominada pelos caudilhos quanto a vasta bacia do Orinoco.
Foi justamente lá que nasceu Hugo Rafael Chávez Frías, em 28 de julho de 1954. Seis meses de seca alternados com seis meses de chuvas, incluindo fortes inundações, marcam a paisagem do lugar e seus habitantes. Os vaqueiros, cujo jeito rude combina com o romantismo selvagem das redondezas, definem a identidade dos venezuelanos e seu cancioneiro.
Filho de uma família humilde de professores, Chávez iniciou seu histórico de engajamento político aos 30 e poucos anos, como soldado do Exército Nacional. Em 1983, fundou com outros oficiais o Movimento Bolivariano Revolucionário 200. Este evocava Simón Bolívar, que havia libertado o norte da América do Sul do domínio colonizador espanhol, e de quem Chávez se considerava discípulo.
Insatisfeito com a política, que obviamente ignorava os interesses da ampla população, em 1992 o grupo conduziu um golpe de Estado contra Carlos Pérez, redundando em fracasso. Dois anos mais tarde, o novo presidente, Rafael Caldera, libertou Chávez da prisão.
O ex-golpista passou a procurar aliados políticos na América Latina e ficou conhecendo o líder cubano Fidel Castro, entre outros. Em 1996, Chávez fundou o partido de esquerda Movimento Quinta República (MVR), para se candidatar às eleições de 1998.
Presidente dos pobres
De início encarado como estranho no ninho, o esquerdista ganhou rapidamente popularidade. Ele traduzia suas mensagens de conteúdo socialista na linguagem do povo, encontrando o tom certo para motivá-lo e, pela primeira de três vezes, foi democraticamente eleito presidente da Venezuela, com ampla maioria de votos.
Logo após sua posse, passou à ação, mandando estatizar setores importantes da economia, acima de todos o petroleiro. Com o faturamento resultante, financiou programas sociais, assegurando assistência médica aos mais pobres e ensino básico para os filhos destes.
Em 2001, seguiu-se uma reforma agrária para reativação dos latifúndios abandonados. Até hoje, cerca de 5 milhões de hectares tornaram-se propriedade estatal, sendo entregues a agricultores e criadores de gado mais pobres, para fins de exploração agropecuária.
Ícone da esquerda latino-americana
Com sua reviravolta radical, que dava as costas ao neoliberalismo – o modelo nominalmente dominante na América Latina desde a década de 1980 –, Hugo Chávez suscitou um debate político transnacional, analisa o historiador social colombiano Andrés Otálvaro. De fato: em outras partes do mundo, chefes de Estado de orientação esquerdista seguiram seu exemplo.
Contudo, muito além da nova ordem econômica, Chávez promoveu em grande parte da população latino-americana uma nova identidade comum, gerando uma união emocional contra o poder hegemônico norte-americano.
Ele foi um dos mentores da criação de alianças de política externa como a Comunidade de Estados Latino-Americanos e Caribenhos (Celac), a Aliança Bolivariana para as Américas (Alba) e a União de Nações Sul-Americanas (Unasul), como contrapeso frente ao hemisfério norte.
Antiamericanismo incondicional
Embora fornecesse, sem problemas, petróleo venezuelano ao arqui-inimigo, em troca de dólares norte-americanos, a atitude antiamericana do chefe de Estado chegava a assumir o caráter de uma mania, e suscitou verdadeiros atos de molecagem.
No inverno de 2006-2007, Chávez distribuiu óleo de calefação aos norte-americanos carentes. E – em resposta ao "Eixo do Mal", cunhado por seu inimigo pessoal George W. Bush – fundou, juntamente com os presidentes Alexander Lukachenko, de Belarus, e Mahmud Ahmadinejad, do Irã, um "Eixo do Bem".
Contudo, a amizade com o Irã também revela um aspecto mais sinistro, diante das tiradas em que Chávez denominava Israel "o braço assassino do império norte-americano". Já em sua primeira campanha presidencial, ele contou com o apoio de um negador do Holocausto, o sociólogo argentino Norberto Ceresole. E a comunidade judaica sentia-se ameaçada pelos clamores antissemíticos da imprensa ligada a Caracas.
A herança de Chávez
Também o êxito de Chávez na política interna deve ser avaliado de forma ambivalente. Durante seus anos de mandato, muitos venezuelanos escaparam da miséria extrema. Contudo, metade da população continua sendo classificada como pobre. Apesar da reforma agrária, 70% dos alimentos do país têm que ser importados e a economia nacional continua dependendo do petróleo e do seu preço no mercado internacional.
Chávez tampouco conseguiu controlar a corrupção e o crime organizado no país. E, pior ainda: desde 1999 o número de assassinatos na Venezuela triplicou.
Hugo Rafael Chávez Frías fundou o "socialismo do século 21" e o difundiu pela América Latina. Nesta terça-feira (05/03), ele faleceu aos 58 anos de idade, vítima de um câncer. É possível que transcorra um bom tempo até que surja uma personagem de carisma comparável. Só isso já basta para que Chávez permaneça um ícone para muitos de seus compatriotas. Apesar de tudo.
Autor: Jan D. Walter (av)
Revisão: Soraia Vilela