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Eleição nos EUA vira disputa de homens x mulheres

29 de outubro de 2024

Políticos misóginos como Trump causam horror entre grande parte do eleitorado feminino, mas fazem muito sucesso entre os seus pares masculinos, que se sentem frustrados, cheios de ódio e têm medo de perder privilégios.

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Apoiadores de Trump erguem cartazes durante comício em Nova York
"Sim, a disputa eleitoral americana parece uma guerra de gênero", escreve a colunista Nina LemosFoto: Alex Brandon/AP Photo/picture alliance

"Por favor, não entreguem os nossos destinos a pessoas como Trump, que não sabem nada sobre nós [mulheres], que demonstraram profundo desprezo por nós." Essa frase faz parte de um discurso apaixonado (ou mesmo desesperado) feito por Michelle Obama sábado no Michigan, em um comício de apoio a Kamala Harris. A dez dias das eleições americanas, a ex-primeira dama e ativista falou especialmente para os eleitores homens: "Votar nele [Trump] é votar contra as mulheres". "Rapazes, antes de votarem, perguntem a si mesmos: de que lado da história vocês querem estar?"

Michelle não falou com os homens à toa. Além de saber que de fato os direitos das mulheres estão em jogo se um extremista de direita famoso por sua misoginia for eleito, ela resolveu implorar para os homens por um motivo simples: o apoio masculino a Trump é um fator crucial, que pode decidir as eleições. Entre os homens, o ex-presidente ganha. Se só as mulheres votassem, Kamala Harris provavelmente seria eleita.

De acordo com pesquisa divulgada pela rede CBS no dia 27 de outubro, Kamala tinha 55% dos votos entre as mulheres e Trump, 43%. Entre os homens, Harris teria 45% dos votos e Trump, 54%. Outra pesquisa, feita pelo USA Today e a Suffolk University, mostra uma diferença ainda maior: Trump estaria superando Harris entre os homens por 53% a 37%, enquanto a candidata democrata estaria vencendo entre as mulheres por 53% a 36%. Se esses dados se confirmarem, essa será a maior diferença de gênero na hora do voto já registrada nos Estados Unidos.

E o apoio ao ex-presidente entre os homens parece crescer na reta final das eleições. De acordo com uma pesquisa The Economist/YouGov, a vantagem de Trump sobre Kamala entre os homens triplicou em uma semana. No dia 23 de outubro, entre o eleitorado masculino, Trump tinha 52%, enquanto Kamala tinha 43%. A mesma pesquisa, feita uma semana antes, mostrava uma vantagem de apenas três pontos. Trump tinha 48% e Kamala 45%. Entre as mulheres, Kamala ganha por mais de dez pontos.

Sim, a disputa eleitoral americana parece uma guerra de gênero. Especialistas americanos já chamam a eleição de "meninos x meninas". De um lado, há a turma liderada por Trump e ídolos da masculinidade tóxica como Elon Musk. Do outro, Kamala apoiada por feministas famosas como Beyoncé e Taylor Swift. Os homens e as mulheres estão polarizados.

Apoiadores de Kamala Harris durante comício eleitoral em Wisconsin
Pesquisas têm apontado predileção do eleitorado feminino por Kamala HarrisFoto: Kevin Mohatt/REUTERS

Quem viveu a eleição brasileira de 2018, quando Jair Bolsonaro foi eleito, sabe bem como isso funciona. Trump, assim como o ex-presidente brasileiro, é um cara que não economiza frases misóginas, politicamente incorretas, e que parece achar que mulheres são seres inferiores. Isso atrai muitos homens e causa repulsa em muitas mulheres. Claro, não estou falando de todos, e há muitas mulheres que apoiam homens como Trump e Bolsonaro, um fenômeno difícil de entender.

Já compreender a rejeição aos políticos misóginos por parte da maioria das mulheres é bem fácil. Mas por que grande parte dos homens ainda prefere sujeitos abertamente misóginos?

É surpreendente, mas homens como Trump, famosos odiadores de mulheres, andam fazendo muito sucesso entre os seus pares masculinos, que se sentem frustrados porque cada vez mais perdem privilégio, estão cheios de ódio e não aceitam que algumas coisas mudaram (para melhor). Existe uma grande nostalgia (e isso acontece no mundo todo) de tempos em que homens mandavam na casa, ganhavam mais que as mulheres (ainda mais que hoje) e eram servidos por suas esposas. Uma prova disso: segundo pesquisa da CBS, as mulheres pensam que poucas mudanças foram feitas para diminuir as diferenças de direitos entre gêneros, enquanto os homens acham que as mudanças foram "longe demais”. Seria engraçado se não fosse trágico.  

Na eleição americana, as diferenças entre os interesses das mulheres e dos homens estão ainda mais presentes porque as pautas de gênero estão sendo abertamente abordadas pelos candidatos. Um desses temas, fortíssimo, é a questão do aborto. Kamala sempre enfatiza o direito das mulheres à escolha por um aborto seguro. Trump faz o contrário.

Além disso, o republicano é retratado por seus apoiadores como "o homem de verdade", o "cara com testosterona". Seus oponentes, mesmo os homens, tentam mostrar que isso não é verdade e apontar a sua masculinidade tóxica. Isso foi feito pelo ex presidente Barack Obama, que disse, em um discurso: "Sinto muito, senhores, notei isso, especialmente com alguns homens que parecem pensar que o comportamento de Trump — o bullying e a humilhação das pessoas — é um sinal de força. Estou aqui para dizer que isso não é o que a verdadeira força é. Nunca foi."

Há outras iniciativas focadas exclusivamente em mostrar para os homens que votar em Harris não faria um "homem menos homem". Em um anúncio divulgado pelo Lincoln Project, formado por ex-republicanos que são contra Trump, o ator Sam Elliott, famoso por interpretar cowboys, fala com voz típica de um deles:  "O que você está esperando? É hora de superar isso e de ser homem e votar em uma mulher."

É estranho que em 2024 obviedades como "se você votar em uma mulher você continua sendo homem" tenham que ser repetidas. Mas uma coisa parece já ter ficado clara: a masculinidade encenada por sujeitos como Donald Trump, além de ser tóxica, é frágil. E pode, sim, fazer com que um sujeito sinta que tenha que votar em um "machão" para ser "homem de verdade". Um perigo.

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Nina Lemos é jornalista e escritora. Escreve sobre feminismo e comportamento desde os anos 2000, quando lançou com duas amigas o grupo "02 Neurônio". Já foi colunista da Folha de S.Paulo e do UOL. É uma das criadoras da revista TPM. Em 2015, mudou para Berlim, cidade pela qual é loucamente apaixonada. Desde então, vive entre as notícias do Brasil e as aulas de alemão.

O texto reflete a opinião da autora, não necessariamente a da DW.