"Colômbia tem desafios sobre gênero e comunidades indígenas"
30 de janeiro de 2025O maior orgulho da colombiana Georgina Epiayú, de 72 anos, é sua carteira de identidade. Ali, ao lado de sua data de nascimento – 31 de dezembro de 1952 – consta que ela é do gênero feminino.
Indígena da etnia wayuu, Georgina era chamada de Jorge, e conseguir oficializar esse reconhecimento identitário foi resultado de uma longa jurídica de 46 anos, permeada de muitas violências físicas e psicológicas. Em 2021, tornou-se a primeira mulher trans wayuu reconhecida formalmente pelo Registro Nacional da Colômbia.
A trajetória de Georgina é o eixo central do documentário Alma do deserto, filme dirigido pela cineasta Mónica Taboada Tapia que entra em cartaz nos cinemas brasileiros nesta quinta-feira (30/01).
Uma verdadeira sobrevivente, tantos foram os ataques transfóbicos que a violentaram, Georgina vive numa ranchería – como são chamadas as aldeias indígenas wayuu – em Uribia, considerada a capital indígena da Colômbia, na região de La Guajira, costa norte do país. Mora sozinha numa casa simples, cria galinhas no quintal e ganha a vida com um pequeno armazém onde vende arroz, manteiga, biscoitos, fósforos e produtos artesanais. "Ela é essa fortaleza, e quis contar sua história. Isso requer muita valentia", comenta Tapia.
Para a cineasta, a protagonista tornou-se um símbolo de luta e resistência porque "passou não só por um ataque, mas por vários e sobreviveu ao tempo. Ela é essa fortaleza, e quis contar sua história. Isso requer muita valentia."
Georgina assistiu ao filme e, inicialmente, não queria viajar para divulgar a produção. Nas últimas semanas, acabou convencida de que seria importante sair da aldeia para que o mundo possa conhecer sua história – e deve aceitar participar de alguns eventos nos próximos meses. "Queremos que ela perceba o calor e o amor da gente", diz a cineasta.
DW-Brasil: Como você conheceu a história da Georgina?
Mónica Taboada Tapia: Em 2016, assisti a um vídeo de uma entrevista que ela deu. Eu não a conhecia. Vi o vídeo dela contando sobre um ataque [que tinha sofrido]. Eu chorei. Não podia acreditar. Naquela noite, sonhei com a Georgina, e meus planos passaram a ser conhecer essa pessoa. Minha obsessão passou a ser conhecê-la. Quando ela nos recebeu, foi muito amável, com um sorriso. Aproximou-se e me abraçou. Foi um acontecimento incrível para mim, conhecê-la em pessoa.
Onde passou esse vídeo?
Na internet, num canal local colombiano. Era um vídeo de dois minutos.
Calcula-se que hoje existam cerca de 800 mil wayuu, metade na Colômbia, metade na Venezuela. A biografia de Georgina é uma exceção ou há muitos casos como o dela dentre os wayuu?
Eu não conheço outro caso, mas me disseram que havia outras pessoas trans [na sociedade wayuu], só que nenhuma sobreviveu tanto. Segundo seus documentos, ela tem 72 anos, é uma adulta idosa. É um milagre que ela tenha sobrevivido, e isso se deve a ela ser uma pessoa muito inteligente, muito empática. Sabe se adaptar às situações. Eu a admiro muito por isso. Ela sabe como foi difícil sobreviver às circunstâncias. Ela atravessou muitas histórias, muitas que nem estão no filme.
Ela se tornou um símbolo?
Claro, porque ela é uma pessoa trans de 72 anos que passou não só por um ataque, mas por vários, e sobreviveu ao tempo. Ela é essa fortaleza, e quis contar sua história. Isso requer muita valentia.
Há muito preconceito na sociedade wayuu? Há muito machismo?
É difícil, porque a Colômbia em geral tem muitos desafios a respeito da questão de gênero, e também a respeito de muitos temas relacionados às comunidades indígenas em geral. É muito compreensível que eles [os indígenas] tenham preconceito contra pessoas não indígenas. Eu me posiciono como uma pessoa branca. Não sou uma pessoa branca, mas pareço uma pessoa branca. As pessoas brancas não indígenas somos inimigas, porque foram as pessoas que chegaram ao território, saquearam o território e, nesse momento, apesar da mestiçagem muito profunda na Colômbia, é preciso refletir e entender mais sobre isso.
Se há preconceito, vamos aproveitar a situação de alguma maneira. Quanto ao machismo, felizmente recentemente sancionaram uma lei que proíbe o matrimônio infantil na Colômbia. Foi algo que vi e não está no filme, mas me impactou muitíssimo. Não somente nesse povoado, mas em outras comunidades: meninas se casando com pessoas muito mais velhas, contra a sua vontade.
Há um machismo arraigado. Na Colômbia, mas não somente. Veja nos Estados Unidos, nesse momento, os corpos das mulheres se tornaram um tremendo problema ideológico. Aqui [entre os wayuu] vejo que as meninas não querem um matrimônio forçado. Então, sim, há muito machismo, mas um machismo que não está só na comunidade. Está no mundo. Vai ser difícil enfrentar, mas é algo que temos de trabalhar.
Georgina acabou sendo aceita pela comunidade wayuu?
Hoje a relação está muito melhor. Melhorou muitíssimo. No momento em que a conhecemos, ela estava muito isolada. Havia acabado de sofrer um ataque, e nesses casos costuma-se culpar a vítima, a vítima se torna um tema proibido. E ela tinha medo. Isso é normal. Mas a ajudaram a sair desse momento, abriram as portas de suas casas e a protegeram, para que ela não fosse atacada [novamente] e assassinada. Ela também se integrou à comunidade nos últimos anos, e hoje é aceita e admirada pela comunidade LGBTQIA+ da região. A situação é muito melhor do que era antes. Ela vive numa ranchería, uma casa com cozinha e outras construções ao redor, junto à população wayuu.
Ela tem participado da divulgação do filme?
Ela já viu o filme. Não é tão fácil [que ela participe da divulgação] porque ela não quer viajar, não gosta de viajar. Pensa que é perigoso deixar a casa sozinha. Mas há pouco tempo o produtor a convenceu a viajar, então é muito provável que logo nos acompanhe. Queremos que ela perceba o calor e o amor da gente e não se sinta como se estivesse trabalhando. Que ela possa conhecer outras cidades, fazer turismo.