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SaúdeReino Unido

"As atitudes em relação ao aborto espontâneo precisam mudar"

7 de maio de 2021

Cerca de 10% das mulheres já perderam um bebê, e por volta de 15 em cada 100 gestações terminam em aborto espontâneo. Pesquisadores defendem mais estudos e atenção médica para lidar com o problema.

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Gestante em cama de hospital
Perder um bebê pode ser uma experiência traumática para as mulheres, mas muitas não recebem o apoio necessárioFoto: Colourbox/Motortion

Uma série de novos artigos publicados na revista médica The Lancet, escritos por dois pesquisadores britânicos e suas equipes, lança luz sobre um problema de saúde extremamente comum, mas negligenciado: o aborto espontâneo.

Sob o lema "O aborto é importante", a professora Siobhan Quenby, da Universidade de Warwick, e o professor Arri Coomarasamy, da Universidade de Birmingham, chamam a atenção para o sofrimento de mulheres que perderam um bebê – e há muitas delas. Todos os anos, cerca de 23 milhões de abortos espontâneos ocorrem no mundo todo.

Segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS), o aborto espontâneo é a causa mais comum para a perda de um bebê durante a gravidez. Mais de 10% das mulheres sofreram um, e o risco de uma gravidez terminar em aborto espontâneo é de 15,3%. E, no entanto, o problema não recebe muita atenção na comunidade médica – e isso mesmo antes da pandemia.

Ultrassonografia
Mulheres que sofrem aborto têm mais chances de desenvolver depressão e ansiedade Foto: Gynmed Ambulatorium

"O aborto espontâneo tem um apelo muito baixo em termos de financiamento", disse Quenby, que também é obstetra, em entrevista à DW.

Ela acredita que faltam pesquisas sobre o assunto e que os médicos precisam encontrar maneiras melhores de ajudar as pessoas que sofrem abortos espontâneos. "E isso só será possível, se conseguirmos mais financiamento". Algo que não irá acontecer se ninguém chamar a atenção para a gravidade da questão, que é o que Quenby e Coomarasamy se propuseram a fazer.

Grande impacto na saúde mental e física da mulher

Para compilar seus relatórios, os pesquisadores analisaram estudos da Finlândia, Noruega, Suécia e Dinamarca, bem como alguns dados dos Estados Unidos, Reino Unido e Canadá. No total, eles revisaram trabalhos que envolviam mais de 500 mil mulheres.

Sofrer um aborto espontâneo pode ter um impacto psicológico considerável, bem como sérias consequências para a saúde da mulher no longo prazo, disse Quenby, vice-diretora do Centro Nacional Tommy's de Pesquisa de Aborto, do Reino Unido.

"Quem sofre abortos espontâneos repetidamente tem mais chances de ter complicações em gestações futuras, além de ter um maior risco de doenças cardíacas, derrame e trombose", explica a obstetra.

Somente a partir da terceira vez

Quenby salienta que, até hoje, muitos profissionais da área médica ainda tratam abortos espontâneos de forma casual, ainda mais quando seus pacientes perderam "apenas" um bebê.

"As atitudes precisam mudar", avalia Quenby. "Na profissão médica, temos essa tradição de que é preciso ter três abortos espontâneos antes de consultar um especialista."

Em vez disso, Quenby defende tratamentos direcionados, ou seja, com diferentes níveis de apoio a depender de quantos abortos espontâneos a paciente sofreu – e isso incluiria também aconselhamento após o primeiro aborto: "Como chegar ao seu peso corporal ideal, parar de fumar, parar de beber. E quem tiver quaisquer outras doenças, que busque tratamento."

Quenby disse que, atualmente, pacientes que acabaram de sofrer seu primeiro aborto espontâneo podem se sentir como se ninguém se importasse com sua situação.

"Como nós, mulheres, aguentamos isso por tanto tempo? É como deixar alguém entrar no hospital só a partir do terceiro ataque cardíaco. Mas você tem que perder três bebês antes que eles falem com você", critica Quenby.

Médica toca mão de paciente em gesto de empatia e apoio.
Obstetra defende mais solidariedade e compaixão com mulheres que sofrem um aborto espontâneoFoto: Colourbox/ldutko

Maior risco entre negras

Ao revisar os estudos para seu relatório, Quenby e Coomarasamy também descobriram que as mulheres negras têm um risco 43% maior de aborto espontâneo do que as brancas. Ainda não há uma explicação conclusiva para isso, mas Quenby acredita que há um misto de fatores.

"Sabemos que as populações negras são mais suscetíveis a diabetes e hipertensão", disse Quenby. "[Ambas as condições] são mais comuns em negras grávidas, então podemos supor que isso seria uma das causas."

Mas o problema vai muito além de fatores puramente médicos, acredita a obstetra. "No Reino Unido, temos o NHS (sistema nacional de saúde britânico), então o atendimento na hora do parto é gratuito", diz. "Em teoria, todos têm acesso igual aos cuidados de saúde, mas, na realidade, os negros os utilizam menos. Não sabemos por quê. Isso [mulheres negras com maior risco de aborto espontâneo] é uma mistura complexa de aspectos sociais, psicológicos e físicos, além de questões genéticas."

Nos Estados Unidos, vários estudos apontam que mulheres negras não recebem o mesmo nível de tratamento de saúde que as brancas. Uma pesquisa feita em 2016 com mais de 3 mil mulheres de dois estados americanos e publicada no Journal of Clinical Oncology descobriu que as negras tinham bem menos chances obter uma recomendação de seu médico para realização de um teste genético como parte da prevenção do câncer de mama. As conclusões foram mantidas mesmo após uma análise dos fatores de risco.

Além de estudos revisados por pares, há inúmeras histórias de negras que não se sentem levadas a sério ou respeitadas quando vão ao médico. Isso provavelmente explicaria por que elas acessam menos os serviços de saúde, o que, por sua vez, pode contribuir para um risco maior de aborto espontâneo.

Perda de sonhos e esperanças

O apoio à saúde mental é parte crucial do tratamento de pacientes que sofreram um aborto espontâneo. Segundo Quenby, o problema mais comum entre as pacientes que procuram sua clínica de aborto após a perda de um bebê é um "luto severo", que pode se transformar em ansiedade ou depressão.

"Após um aborto espontâneo, há 20% de chance de a mulher ter transtorno de estresse pós-traumático nove meses depois", disse Quenby. "Só porque ela estava grávida por apenas um ou dois meses não significa que, nesse período, ela não sonhou com o bebê. Quando alguém sofre um aborto, perde todas as esperanças e sonhos para o futuro."

A obstetra conta que já viu inclusive relacionamentos se desfazerem porque os parceiros não conseguiam falar um com o outro sobre o ocorrido.

Covid-19 agravou o problema 

Com a pandemia, a situação ficou ainda mais difícil. Em muitos hospitais do NHS, outras pessoas eram proibidas de entrar para acompanhar a grávida. "Tivemos casos terríveis, com o marido no estacionamento enquanto a mulher sofria um aborto", conta Quenby.

Algumas delas não tinham coragem de voltar e contar para seus maridos, então a equipe do hospital fazia isso por elas. "Assim, tínhamos o marido chorando no estacionamento e a mulher chorando no hospital", lembra.

Felizmente, as restrições estão sendo levantadas no Reino Unido, e muitos já podem acompanhar suas parceiras ao hospital. Isso facilita muito na hora de oferecer aconselhamento e apoio, pois muitas mulheres ficam tão ansiosas e fora de si que acabam não registrando o que os médicos dizem a elas, diz Quenby.

"Nas últimas semanas, temos autorizado a presença dos parceiros, e tudo ficou muito mais fácil. O marido se senta lá e segura a mão dela, e só com esse contato físico, eles conseguem lidar melhor com tudo", conta.

"Um aborto espontâneo é algo que afeta o casal. Se só lidamos com a mulher, estamos lidando com meio casal. Isso tem sido um desastre. Eu não tinha me dado conta do quanto precisávamos dos parceiros por lá", conclui a obstetra.