Antropofagia indigesta
31 de março de 2006É curioso o fato de um romance histórico centrado na trajetória do naturalista Alexander von Humboldt ter constado durante semanas da lista dos best-sellers na Alemanha. Die Vermessung der Welt (A medição do mundo), de Daniel Kehlmann (Munique, 1975), toma Humboldt como protótipo do alemão, algo a ser dissecado em contraposição à personagem de um contemporâneo seu, o matemático e astrônomo Carl Friedrich Gauss. Aqui não só se opõem duas idéias de como medir o mundo, mas sim mundos diferentes.
A curiosidade por Humboldt surgiu quando Kehlmann começou a ler intensamente a literatura sul-americana durante uma estada no México. Segundo o autor descreveu numa entrevista à imprensa alemã, Humboldt lhe facilitou o acesso a um universo cultural que o interessava, mas se mantinha hermético para ele:
"Fiquei muito impressionado com a literatura sul-americana e ao mesmo tempo tive a impressão de que muitas das possibilidades emocionais e artísticas que estes escritores têm não estão ao meu alcance, como autor alemão. Dá para notar então que a gente vem de uma outra cultura. Mesmo que haja possibilidade de jogar com essas coisas, tem que ser de uma outra forma. Então, de repente, tive a sensação de que Humboldt era a minha chave, pois ele entrou neste mundo, mas entrou como alemão."
De trás para frente e vice-versa
Esta forma de abordagem intercultural, que permite acessar um outro mundo, mantendo-se e mantendo-o como corpo estranho, é ainda mais radical no último experimento poético de Ulf Stolterfoht (Stuttgart, 1966): Traktat vom Widergang (Tratado do retrogresso). Após 41 fragmentos de uma prosa inusitada, o poeta explica seu intento:
"Em 1988, o escritor argentino Juan Filloy publicou uma coletânea de palíndromos, precedendo-a com o escrito teórico Tratado de palindromia, que – em 41 passagens – tenta elucidar a intrincada matéria palindromítica. Mesmo sem falar espanhol e mais com ajuda do maquinário sonoro do que de um dicionário, transportei para o alemão estas pequenas unidades."
O resultado é o Tratado do retrogresso, uma insólita seqüência de tentativas e erros, em que as lacunas daquilo que não se entende são preenchidas com uma fantasia inspirada no material sonoro. Stolterfoht, ativista de uma estética da redução e da redescoberta poética dos jargões técnicos, reinventa neste experimento a tradução como incorporação do outro sem a digestão antropofágica.
Volta de um outro parafuso
"Ler como sujeito, objeto das frases. Como se o discurso fosse meu, colocar estas frases estranhas, estranhadas na boca e movê-las, virá-las, mastigá-las, degustá-las até elas se tornarem minhas. [...] Palavra revirada na boca, palavra do que é próprio – como de repente sobressai seu parentesco com o estranho: num momento de virada, 'estranho' e 'próprio' parecem sinônimos, contra-sentidos da significância [...]: There is a turn of the stranger."
Assim descreve a poeta e autora multimídia Barbara Köhler (Pennig, 1959) sua experiência de traduzir Gertrude Stein para o alemão. Em sua versão de Tender Buttons (1914), intitulada Zarte knöpft, Köhler contorce sua própria língua para transmitir os múltiplos sentidos da prosa esquiva da mais singular voz da vanguarda norte-americana.
O resultado é um alemão linearizado e fragmentário, livre das rígidas estruturas sintáticas e das normas que ditam se as palavras devem ser escritas juntas ou separadas. Um idioma próprio que dialoga com a poesia refletida de Köhler e atribui uma voz própria a Gertrude Stein em alemão.
Com certeza valeria a pena retraduzi-la para o inglês: o reverso palindrômico com certeza criaria uma voz contemporânea análoga e distinta de Gertrude Stein.