Inimigos que são aliados na luta contra as forças de Tigray
9 de dezembro de 2020Após semanas de guerra, o primeiro-ministro da Etiópia, Abiy Ahmed, reivindicou vitória na sua operação militar contra o partido que governa a região de Tigray, a Frente de Libertação do Povo de Tigray (TPLF), no Norte da Etiópia.
Os confrontos violentos já fizeram milhares de mortos, entre civis e forças de segurança, segundo o International Crisis Group. Mais de 40 mil pessoas terão abandonado as suas casas, à procura de refúgio sobretudo no Sudão, e aumentam os receios de que o conflito interno na Etiópia se alastre além-fronteiras, numa altura em que Abiy Ahmed continua a rejeitar os apelos ao diálogo.
"[O Presidente da Eritreia] Isaias Afewerki participa nesta guerra desde o primeiro dia. Esta guerra é tanto de Isaias como de Abiy, como é uma guerra dos nacionalistas Ahmara. Os três têm a sua própria agenda, os seus próprios interesses na luta contra a TPLF", explica Kjetil Tronvoll, diretor de investigação de estudos de paz e conflitos na Universidade Bjorknes, na Noruega.
Inimigos de longa data
A Etiópia e a vizinha Eritreia têm uma longa e problemática história de conflito, mas atualmente Isaias Afewerki e Abiy Ahmed estão unidos na luta contra a TPLF.
"O regime da Eritreia vê a TPLF como inimiga há muito tempo. É muito irónico, porque a TPLF e a Frente de Libertação do Povo da Eritreia (EPLF), que eram os dois movimentos rebeldes em Tigray e na Eritreia, lutaram juntos contra o Derg, o regime marxista que governava a Etiópia nos anos 1980", recorda Michela Wrong, jornalista e especialista em temas relacionados com a Eritreia.
Até aos anos 1990, a TPLF e a EPLF, um movimento separatista co-fundado por Isaias Afewerki, foram aliados na luta contra o governo militar da Etiópia, que foi derrubado em 1991. Dois anos depois, a Eritreia conseguiu a sua independência e TPLF tornou-se a principal força da coligação que dominou a política da Etiópia durante quase três décadas antes de Abiy Ahmed subir ao poder, em 2018.
"Era suposto serem regimes irmãos que tinham lutado juntos e que iam ser bons vizinhos, mas depois tivemos a guerra por causa da fronteira, em 1998, que durou dois anos. E esse foi um conflito muito amargo", comenta a jornalista que acrescenta: "Desde então, os dois regimes odeiam-se".
Depois do acordo de paz, em 2000, a tensão armada entre a Eritreia e a Etiópia durou quase 18 anos. Chegou ao fim quando Abiy Ahmed, do Partido Democrático Oromo, assumiu o cargo de primeiro-ministro.
"Isaias dizia que não, rejeitava negociações. Quando Abiy começou a demitir altos funcionários de Tigray, em junho de 2018, então o contacto entre Asmara e Abiy intensificou-se. A 20 de junho, Isaias mostrou-se disponível para trabalhar com Abiy no processo de paz, porque a TPLF tinha perdido o jogo. Para Isaias, o processo de paz era apenas uma continuação da guerra contra a TPLF. E era aí que Abiy precisava dele, do apoio dele para continuar a marginalizar a TPLF", relata Kjetil Tronvoll.
Inimigo do meu inimigo meu amigo é
William Davison, analista sénior para a Etiópia no International Crisis Group, sublinha que a relação entre a Eritreia e Tigray continua a ser negativa e isso tem consequências nos laços entre a Etiópia e Tigray até aos dias de hoje. Segundo o analista, Tigray e a liderança da TPLF são consideradas o principal obstáculo para a melhoria das relações entre os dois países.
No entanto, a aliança com o país vizinho, explica o analista, traz uma vantagem à Etiópia: "Tigray tem uma longa fronteira com a Eritreia, então para apoiar a campanha do governo etíope para derrubar o Governo de Tigray fazia sentido usar a Eritreia como base logística", resume.
Segundo Kjetil Tronvoll, a longo prazo, Abiy Ahmed e Isaias Afewerki têm o mesmo objetivo, o que os incentiva a trabalharem juntos depois de anos de conflito. "Há elites políticas regionais a lutar entre si e a aliarem-se para ganhar vantagem na balança de poder. A mentalidade da guerra e das alianças políticas está muito enraizada na história. E foi isso que aconteceu agora. É isso que explica esta mudança tão súbita de amigos para inimigos e de inimigos para amigos", frisa a especialista.
Abiy Ahmed precisa do apoio de Isaias Afewerki para continuar a afastar a TPLF do poder, que não reconhece autoridade em Abiy Ahmed, que recebeu o Nobel da Paz no ano passado pelos esforços de reconciliação com a Eritreia. Já a Eritreia, segundo o especialista, está disposta a oferecer os seus soldados como "carne para canhão" para derrotar as forças de Tigray.
Mas será que a nova aliança pode ser considerada uma nova amizade? "Há um princípio muito conhecido na política que é ‘o inimigo do meu inimigo é meu amigo’ e eu acho que é o que está a acontecer aqui. Muitas pessoas ficaram surpreendidas pela boa relação criada pelo primeiro-ministro etíope e o regime da Eritreia. Eram ambos regimes que achavam que tinham um grande problema com a TPLF. Essa aliança significa que Tigray está rodeada de regimes inimigos, hostis. É uma posição pouco invejável", responde Michela Wrong.