"Relação Guebuza e Boustani não é surpreendente"
16 de novembro de 2019No decorrer desta semana, foi revelado no Tribunal de Brooklyn, em Nova Iorque, que o antigo Presidente moçambicano Armando Guebuza trocou mensagens telefónicas em 2016 com o negociador da Privinvest que está a ser julgado nos Estados Unidos, Jean Boustani.
Entrevistado pela DW, o sociólogo moçambicano Elísio Macamo, diz que o diálogo entre Armando Guebuza e Jean Bousatani revelado nesteTribunal, onde decorre o julgamento de um caso de crimes financeiros relacionados às dívidas ocultas, não é nada surpreendente, uma vez que as as dívidas ocultas foram iniciativa do Estado moçambicano. Sobre a aparente intimidade entre Guebuza e Boustani, negociador da Privinvest, este académico argumenta, entre outras coisas, com a possibilidade da necessidade de se criarem laços de confiança para firmar um negócio.
Para Elísio Macamo, este caso, mais do que expôr corruptos, está a revelar a fragilidade das instituições do Estado e, por isso, alerta, dele devem ser tiradas lições, ao invés de se pautar por especulações.
DW África: Considera normal que Armando Guebuza seja mencionado em provas apresentadas em Tribunal. Porquê?
Elísio Macamo (EM): Acho que não é surpreendente que assim seja porque se tratou de um negócio de Estado, apesar de tudo. Por isso, seria estranho que o Presidente da República não tivesse nenhum contacto com as pessoas com quem se estava a negociar. É preciso lembrar que essas empresas foram criadas, não por iniciativa privada, mas por iniciativa do Estado. E, independentemente, das intenções ulteriores que possam ter estado por detrás da criação desses negócios, seria irreponsável que o chefe de Estado, que depois garantiu essas dívidas, não tivessse nenhum contacto com as pessoas que propuseram esse negócio e com quem se estava lidar. Não é surpreendente e não vai ser surpreendente quando se souber que o anterior ministro da Defesa [Filipe Nyusi] tinha contacto com várias pessoas neste assunto.
DW África: A aparente relação de intimidade entre o anterior Presidente e Jean Boustani é algo para ser relevado, na sua opinião?
EM: Não, é um pouco difícil responder a essa questão por duas razões: uma é que a proximidade que parece estar documentada, e que foi apresentada [no Tribunal de Brooklyn], pode sugerir uma relação que prejudique o tratamento ponderado e objetivo do assunto que estavam a negociar. Temos sempre aquela expetativa de que decisões dessa natureza não podem ser tomadas com base em relações de amizade. É possível que a proximidade que eles tinham tenha facilitado o negócio. Mas por outro lado, e essa é a segunda razão, é natural que, quando se faz um negócio, sobretudo um negócio que foi mantido secreto por razões que eles apresentaram oportunamente, haja uma forte necessidade de confiança entre as partes. Não é possível firmar negócio sem que haja confiança e essa confiança, muitas vezes, pode desembocar numa certa intimidade. neste caso, é facto, há uma forte razão para estamos preocupados, porque como tudo foi feito de forma secreta, não houve a possibilidade de obter uma terceira opinião em relação ao negócio. É uma fraqueza institucional em Moçambique que voltou a ser repetida agora com esses negócios do gás em Cabo Delgado, onde o Governo praticamente tomou a decisão sozinho, sem obter a assessoria da sociedade através de uma discussão aberta sobre a natureza desse negócio.
DW África: Nem o argumento ou justificação da preservação dos interesses do Estado e soberania valeria para este caso?
EM: Esse é que é um problema muito sério, mas eu não havia de correr imediatamente para o que algumas pessoas fazem, que é partir do princípio que esta questão de se tratar de Defesa e Segurança exigia que houvesse sigilo para que eles pudessem roubar e que tudo era um subterfúgio. Não faria isso, porque limita a nossa capacidade de perceber todos os contornos do assunto. Penso que, mesmo em circunstâncias em que o negócio é de Defesa e Segurança, e que portanto exige sigilo, deva ser possível criar mecanismos que façam com que seja qual for a decisão que seja tomada, seja de forma objetiva. Há toda uma questão de fórum institucional e político que precisa de ser refletida, mas que não está a ser porque está toda a gente ocupada a celebrar o facto de terem sido descobertos corruptos.
DW África: Os documentos apresentados no Tribunal de Brooklyn indicam que Armando Guebuza continuava a acompanhar as movimentações das três empresas envolvidas nas dívidas ocultas, mesmo quando já não era Presidente da República. Havia alguma legitimidade para que o fizesse?
EM: Claro! Porque toda a responsabilidade recai sobre ele. Penso que toda a gente ficaria surpreendida se, a partir do momento em que deixou de ser Presidente, ele lavasse completamente as mãos e dissesse que ja não se interessa, sobretudo num caso com consequências tão graves para o país. Agora, a questão que deve ser interessante verificar é se ele fez isso em articulação com o Governo, se ele estava em diálogo com o seu sucessor. Se ele não tiver feito isso dessa maneira é grave. Isso seria uma certa falta de responsabilidade e falta de respeito para com o seu sucessor.
DW África: O contínuo interesse de Armando Guebuza sobre o caso, depois de deixar a Presidência, é visto com uma tentativa de evitar o default [incumprimento] e por essa via evitar que o seu filho fosse descoberto. Par si essa suspeição roça a perversão ou faz sentido?
EM: Essa é uma interpretação que faz parte de uma abordagem que me parece extremamente problemática que algumas pessoas têm em relação a esse assunto. Essas já são questões criminais e têm pouco a ver com o interesse que este caso devia ter ao nível político. E isso tem mais a ver com o tipo de lições que devemos tirar deste caso, e que tipo de arranjos institucionais devemos fazer para que o país não seja vulnerável a este tipo de coisas, isso é que é mais interessante. Agora querer saber qual é o grau de envolvimento do filho, o que ele tentou fazer para o proteger, etc, não vejo a utilidade desse tipo de especulação, tanto é que esses são assuntos que estão a ser tratados em tribunal. O país devia estar mais preocupado em saber que lições deve tirar desta situação. E a pior lição que pode ser tirada é de que este é um caso de ganância individual! É um caso institucional e é também um caso de vulnerabilidade do nosso país em relação ao sistema financeiro internacional. É um problema do partido FRELIMO que, claramente, não tem mecanismos de controle, é um problema da sociedade moçambicana que praticamente nutre instituições financiadas por organismos externos para reproduzir e macaquear um discurso que não tem nenhuma utilidade para o país.
DW África: Estão a ser apresentadas evidências de que houve corrupção e outras situações ilícitas neste caso. Acha que Armando Guebuza foi "tramado" pelos seus intermediários ou tinha conhecimento de que poderia haver esquemas como, ao que tudo indica, terão acontecido?
EM: Há um argumento que algumas pessoas gostam de colocar, que é de dizer que neste tipo de negócios há sempre comissões e isso pode ser verdade até certo ponto, mas esse não pode ser o ponto de partida para analisar este caso. O ponto de partida é a racionalidade que esteve por detrás dele. E essa racionalidade tem a ver com o que o Governo e o Presidente Guebuza disseram em relação à promoção e proteção do interesse nacional na área da Defesa, etc. Agora, em qualquer negócio existe sempre a possibilidade de que haja aproveitamento ilícito da situação. Não é nomal, e não se justifica por isso, mas isso também pode acontecer. Pode acontecer, inclusivamente, com o próprio beneplácito do chefe, portanto, do próprio Presidente, ou pode acontecer à sua revelia. O que nos deve preocupar é saber como isso foi possível e qual é o papel que a procura de aproveitamento pessoal desempenhou para que não houvesse cuidado para a realização deste negócio. Seria um insulto muito grande à inteligência dos moçambicanos partir do princípio de que este negócio foi feito por pessoas que apenas queriam encher o seu bolso e isso não faz nenhum sentido. Faz sentido para quem só tem na cebeça esta questão da corrupção e da ganância. Mas para quem quer entender o desafio que é desenvolver um país como Moçambique, esse tipo de ponto de partida não pode constituir um começo. Que vulnerabilidades este negócio está a revelar do Estado moçambicano, do país, do partido da sociedade moçambicana e o que isto impõe como agenda política e institucional para aprendermos disto. E todas as outras coisas são uma pura perda de tempo.