Condenação da Vale "devolve esperança às comunidades"
24 de março de 2021O Tribunal Administrativo condenou a empresa mineira Vale Moçambique por denegação de informação de interesse público. A decisão surge em resposta a um requerimento apresentado pela Ordem dos Advogados de Moçambique.
A multinacional brasileira explora a mina de carvão mineral em Moatize, na província de Tete, centro de Moçambique, onde por diversas vezes foi acusada pela comunidades locais de desrespeito dos direitos humanos e poluição ambiental.
A Ordem dos Advogados de Moçambique, solicitava, por exemplo, informação sobre o estágio atual do processo de reassentamento das comunidades afetadas pelo projeto e resolução das reivindicações das comunidades, informação sobre as garantias de subsistência, de geração de renda e de segurança alimentar das comunidades afetadas pelo investimento da Vale na exploração do carvão mineral e informação sobre o valor total dos impostos pagos pela Vale Moçambique ao Estado Moçambicano, no período de 2013 a 2019.
Em entrevista à DW África, o jurista Júlio Calengo, representante da Liga dos Direitos Humanos em Tete, considera da decisão do Tribunal Administrativo "devolve alguma esperança às comunidades".
DW África: Como é que analisa a decisão do Tribunal Administrativo de condenar a Vale Moçambique por denegação de informação de interesse público?
Júlio Calengo (JC): Analiso com muita satisfação. É de parabenizar a justiça moçambicana. Com o surgimento de várias empresas multinacionais em Moçambique, e particularmente em Tete, tem havido cada vez mais conflitos entre as comunidades e as empresas que chegam. Quando uma empresa quer invertir, quer terras e aquelas terras já pertencem a certas comunidades, logo estamos perante um conflito. A situação está muito complicada. Já não existe confiança entre os próprios moçambicanos, o triângulo de quem toma a decisão. Esta tomada de decisão dos órgãos de justiça devolve alguma esperança a estas comunidades.
DW África: Houve sempre conflitos em relação a Cateme, na questão dos contratos não se conhece a fundo o que foi negociado com as comunidades. Perante esta decisão de que a Vale deve disponibilizar essas informações, o que isso representa para a vossa luta?
JC: Devolve um respeito, um outro nível de reconhecimento. Antes de intentar qualquer ação que passa por esses órgãos de justiça, primeiro fizémos outras tentativas de resolução de conflitos como o aconselhamento, a própria mediação, interpelação extra-judicial. Ou seja, o tribunal é a última instância pela qual nós lutámos.
DW África: A falta de disponibilização de contratos firmados entre o Governo e as comunidades e a sociedade civil sempre foi uma "artimanha" usada pela Vale durante esse período. Na sua análise, o que é que realmente estava por detrás dessa negação de informação?
JC: As decisões têm sido tomadas no âmbito político. Moçambique tem um contexto histórico de perda de indústrias, de megaprojetos, então há um ligeiro medo das pessoas que estão no poder de tomar decisões. Como quem diz, se eu "apertar" demasiado vou retrair as empresas. Isso acaba por levar a decisões políticas, como se as coisas fossem fáceis para a empresa, criar facilidades. Mas em contrapartida acaba por trazer a violação grave dos direitos dos cidadãos e das pessoas afetadas.
DW África: Muito recentemente o tribunal provincial de Tete também condenou a empresa Vale a indemnizar um grupo de camponeses em Moatize. Em menos de dois meses, há essa decisão também do tribunal admnistrativo. A Vale esteve durante muito tempo a atropelar princípios?
JC: Sim, é que uma das coisas que deve acontecer é que todas as pessoas que têm a sorte de negociar a favor das comunidades, devem saber fazer negócios, mas também pensar nos direitos humanos. É preciso começarmos a pensar em responsabilizar as pessoas a quem, de forma particular, são confiadas a tomar decisões a favor das comunidades.
DW África: E, neste caso, não vos parece estranho que estas decisões judiciárias apareçam agora dez anos depois da Vale ter começado a operar e justamente num período em que a empresa anuncia a retirada dos investimentos na mina de Moatize?
JC: É muito estranho mas também podemos dizer que nunca é tarde. Nós todos precisamos de aprender. Em termos de capacitação, treinamento, alguma coisa está a falhar. Hoje quem vem investir, atinge os seus objetivos e vai embora. Não vai ficar para sempre. Temos de saber negociar hoje e não correr agora que a empresa está a sair e tentar fechar uma e outra coisa como fuga de responsabilidade mais tarde.