Cabo Delgado: Como garantir os direitos humanos no conflito?
7 de agosto de 2021O envolvimento de forças externas com considerável registo de violência faz acender os receios sobre um aumento da violência contra a população, e não só, em Cabo Delgado.
No entanto, já não é novidade a violação dos direitos humanos no norte de Moçambique, principalmente por parte de quem tem maior responsabilidade de a preservar, as Forças de Defesa e Segurança (FDS).
Em setembro de 2020 aconteceu um dos casos mais macabros, documentado pela Amnistia Internacional em vídeos e fotos que mostravam "tentativas de decapitação, tortura e outros maus-tratos de detidos, o desmembramento de alegados combatentes da oposição, possíveis execuções extrajudiciais e o transporte de um grande número de cadáveres até valas comuns".
Direitos humanos em contexto de guerra
Sobre os direitos humanos em contexto de guerra, o especialista em direito internacional André Thomashausen sublinha que "mesmo os conflitos armados internos devem obedecer às regras das convenções de Genebra".
"Portanto", continua Thomashause em entrevista à DW, "não pode haver abusos da população civil, não pode haver sevícias, não pode haver ataques [contra a população]".
Segundo o especialista, hoje em dia fala-se em abater os insurgentes, "mas os insurgentes são combatentes, têm direitos dos combatentes e não podem simplesmente ser abatidos". "Dever ser feitos prisioneiros e devem ser julgados em tribunais", lembra.
Dever do Estado
Um direito que muitos moçambicanos nas redes sociais insistem em não querer tomar em conta e até contestar. É responsabilidade do Governo moçambicano salvaguardar os direitos humanos, mesmo em contexto de guerra. De que forma essa tarefa pode ser materializada?
Para João Nhampossa, especialista em direitos humanos da Ordem dos Advogados de Moçambique (OAM), devia haver uma task force entre as instituições de Defesa e dos direitos humanos, com um mandato próprio para isso em Moçambique, incluindo as organizações da sociedade civil, para em conjunto estudarem e intervirem com ações concretas e urgentes para protegerem os direitos.
"Por exemplo, a determinação de zonas seguras e a evacuação da população para lá com a proteção das forças conjuntas que já existem lá", exemplifica Nhampossa.
Para isso basta que as autoridades comecem por considerar a Constituição e respeitar vários instrumentos internacionais a favor dos direitos humanos de que o país é signatário, como a Declaração Universal dos Direitos Humanos, avalia o especialista. Embora esta última tenha sido criada em contexto de guerra, continua a ser nesse contexto onde é provavelmente mais desrespeitada, volvidos quase 75 anos.
Historial de violência
Algumas missões africanas enviadas a Cabo Delgado têm um registo de violência que suscita receios, como por exemplo a missão sul-africana na RDC.
Sobre possíveis réplicas no norte de Moçambique, a especialista sul-africana em contraterrorismo Jasmine Opperman considera que "as violações de direitos humanos continuam a ser uma preocupação" e, por isso, defende "a ênfase no respeito pelos direitos humanos, como um código de conduta a ser aceite por forças externas, não apenas pela África do Sul".
"O problema é que as tropas que vão para Cabo Delgado não estão familiarizadas com o ambiente local, com a língua e cultura. Distinguir insurgentes de civis, quando se provou que os parceiros no terreno, os soldados moçambicanos, mostraram pouco respeito pelas vidas dos civis, diria que sim... O risco de que civis serão [vítimas] numa província militarizada é bastante alto", avalia Jasmine Opperman.
Terá Maputo se acautelado sobre estas questões?
Pelo que se sabe publicamente, não, o Governo pouca atenção dá a esta matéria. Contudo, depois dos escândalos de violações dos direitos humanos que causaram revolta um pouco por todo o mundo, o Governo de Filipe Nyusi começou a dar a cara para prometer maior defesa dos direitos humanos.
O especialista em paz e conflito da Universidade Joaquim Chissano, Calton Cadeado, lembra isso, mas alerta:
"O chefe de Estado e os ministros do Interior e da Defesa têm estado a dizer sempre que nós somos uma força republicana que defendemos o Estado, nada de violações dos direitos humanos. E esse outros [soldados] que vêm aí vêm com o mesmo comando, mas não é garantido que vão manter o respeito pelos direitos humanos. Eles têm de fazer um trabalho sujo, mas depois quem vai pagar a fatura somos nós".
Nesse sentido, a sociedade civil teria igualmente um papel relevante na preservação dos direitos fundamentais.
"Em situação de guerra é muito complicado, mas o Governo tem de dar espaço para a sociedade civil entrar no terreno para ajudar a mobilizar as populações para denunciar os insurgentes no seio da população, denunciar os que mobilizam jovens a aderirem a estes grupos terroristas", exemplifica João Nhampossa.
O especialista afirma que o Governo tem de usar a sociedade civil como um interlocutor válido para se comunicar com as populações e estas ajudarem as FDS a denunciarem e a protegerem-se elas próprias. "Então, não pode haver uma limitação de virada sem fundamento do ponto de vista da atuação da imprensa e da sociedade civil, do ponto de vista da liberdade de circulação. Penso que é uma atividade mais de sensibilização, mobilização, educação cívica e dar algum conforto a população", conclui.